O jornalista Vladimir Herzog chegou sozinho na sede DOI-CODI, o temido órgão de repressão do Exército durante a ditadura militar. Diretor da TV Cultura, em São Paulo, ele tinha sido convocado para depor sobre as suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que havia sido banido. Vlado, como era chamado pelos amigos, negou qualquer participação em atividades clandestinas.
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Mesmo assim, naquele dia 25 de outubro de 1975, o jornalista foi torturado até a morte pelos militares, que alteraram a cena do crime para parecer que Herzog tinha cometido um suicídio. A foto de Vlado morto, porém, tinha evidências claras da farsa e se tornou um símbolo da brutalidade do regime.
Aquele foi um dos assassinatos mais chocantes do período autoritário no Brasil. Nesta semana, 50 anos, uma série de eventos vai relembrar o episódio. Nesta segunda-feira, o programa “Roda Viva”, da TV Cultura, recebe o engenheiro Ivo Herzog, filho de Vlado, para uma entrevista. Além disso, um documentário produzido pela emissora vai estrear na Mostra de Cinema de São Paulo e será exibido no mesmo canal. Também serão celebrados dois atos, na Associação Brasileira de Imprensa, sexta-feira, no Rio, e na Catedral da Sé, sábado, em São Paulo, em homenagem ao jornalista.
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Herzog foi morto em meio a uma divisão dentro das próprias Forças Armadas. Em 1975, não existiam mais organizações da luta armada contra a ditadura. Grupos guerrilheiros como a VAR-Palmares e a Ação Libertadora Nacional (ALN) tinham sido derrotados pela repressão.
Carlos Marighella, Carlos Lamarca e vários outros líderes rebeldes haviam sido mortos pelo regime, que também massacrou a guerrilha do Araguaia. Quando o general Ernesto Geisel assumiu o governo, em 1974, o objetivo dele era começar uma abertura política “lenta e gradual” no país.
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Só que havia uma grande parcela de militares “linha dura” que não podia nem ouvir falar em abertura e queria achar motivos para justificar não só a continuação, mas também o recrudescimento do regime. Essa turma, liderada pelo general Sylvio Frota, ministro do Exército, era conhecida como a “tigrada”.
Em meados dos anos 1970,, sem os grupos da luta armada para perseguir, a tigrada decidiu ir atrás do PCB, também chamado de Partidão. Em 1975, centenas de pessoas foram presas, entre elas dezenas de policiais militares de São Paulo, sob suspeita de integrar a legenda comunista. Entre eles estava o tenente da PM José Ferreira de Almeida, o Piracaia, militante do PCB morto num porão do DOI-Codi.
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Vladimir Herzog assumiu a direção de jornalismo da TV Cultura em setembro daquele ano, com aval do governador paulista, o Paulo Egidio. A nomeação gerou a revolta de políticos como os deputados estaduais Wadih Helu e José Maria Marin, da ARENA, o partido de sustentação da ditadura.
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Nascido na antiga Iugoslávia e radicado no Brasil, Vlado era um conhecido militante comunista, mas o jornalista de 38 anos, casado e pai de duas crianças, não tinha envolvimento com nenhuma atividade clandestina. Seu cotidiano estava voltado para cobrir cinema, teatro e cultura em geral.
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No dia 24 de outubro daquele ano, agentes da repressão tentaram prender Herzog na TV Cultura, mas aceitaram tomar o depoimento dele no dia seguinte. Herzog chegou às 8h na sede do DOI-Codi em São Paulo, onde ficou preso com outros dois jornalistas. Ambos ouviram quando um torturador deu a ordem de levar a máquina de choques elétricos pra sala onde Herzog estava sendo interrogado. Para abafar o som dos gritos na sala, um aparelho de rádio foi ligado com o volume no máximo.
Vlado nunca mais foi visto com vida. Na versão dos militares, o jornalista se enforcou com o cinto do macacão de presidiário que ele vestiu assim que chegou no órgão do Exército. Os agentes chamaram o fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, do Instituto de Criminalística da Polícia Civil, para registrar o corpo do diretor da TV Cultura pendurado pelo cinto. Décadas mais tarde, o próprio Vieira daria entrevistas e prestaria depoimentos afirmando ter desconfiado da cena assim que viu o corpo de Herzog.
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Como mostra a imagem feita pelo fotógrafo, o jornalista estava pendurado pelo pescoço com os pés tocando o chão, e seus joelhos estavam dobrados. Ou seja, teria sido impossível alguém se enforcar daquele jeito. Além disso, o uniforme usado pelos presos no DOI-Codi não tinha cinto nenhum. “Achei estranha a posição dos pés, no chão, e tudo que estava ocorrendo em volta, a blindagem de não deixar tirar outras fotos do local”, disse o fotógrafo, em 2013, durante depoimento na Comissão da Verdade de São Paulo. “Naquele momento eu estava muito tenso. Depois, me dei conta que foi um homicídio”.
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De acordo com a tradição judaica, adeptos da religião que cometem suicídio devem ser enterrados em local afastado dos demais. Vlado era judeu, mas quando o corpo dele estava sendo preparado para o sepultamento, o rabino Henry Sobel, à época com 31 anos, viu as marcas de tortura e não deixou que ele fosse enterrado na “ala dos suicidas” do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo.
Aquela foi uma atitude aberta de contestação à ditadura, considerada pela família Herzog a primeira denúncia pública do assassinato e da farsa armada pelos agentes da repressão no DOI-Codi.
Dias depois, o rabino Sobel liderou, ao lado do então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo, e do pastor James Wright, um ato ecumênico na Catedral da Sé que reuniu mais de 8 mil pessoas.
Viúva de Herzog, a publicitária Clarice Herzog processou o estado e, em outubro de 1978, ainda na ditadura, um juiz federal responsabilizou o governo pela morte do jornalista, argumentando que a União tinha obrigação de zelar pela integridade física de Vlado, uma vez que ele estava sob custódia do DOI-Codi. Mesmo assim, somente em 2012, o registro de óbito de Herzog foi retificado, deixando claro que ele morreu devido à tortura na sala do DOI-Codi. Já em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por negligência na investigação do assassinato.