A paralisação do governo dos EUA — o mais longo “shutdown” da História do país, que completou 38 dias nesta sexta-feira — abriu uma série de crises na administração federal, enquanto representantes dos partidos Democrata e Republicano não conseguem aprovar um projeto orçamentário que destrave a pauta, e volte a autorizar gastos básicos. Entre demissões por falta de recursos, atrasos de salário de uma vasta gama de trabalhadores e prejuízos a serviços importantes — incluindo o cancelamento de centenas de voos em dezenas de aeroportos —, o “apagão” nas contas do governo expôs 42 milhões de pessoas que dependem do Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP, na sigla em inglês), o maior programa de combate à fome do país.
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A semana foi caótica e angustiante para quem depende do programa americano. Com a paralisação, o governo liderado por Donald Trump tentou suspender o pagamento dos benefícios em novembro. Mas, após ações judiciais, o governo anunciou na terça-feira que haveria pagamentos parciais — informando que isso “levaria algum tempo”.
Na quinta-feira, o juiz federal John McConnell Jr., do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito de Rhode Island, ordenou que o governo pagasse integralmente o programa de assistência alimentar para famílias de baixa renda, após repreender o governo por atrasar o auxílio. O magistrado atribuiu o atraso indevido, em parte, a uma tentativa de Trump e seus assessores de interromper o programa “por razões políticas”. Ele mencionou declarações públicas do presidente, em que o republicano afirmou que suspenderia todos os pagamentos de vale-alimentação até que os democratas chegassem a um acordo para encerrar a paralisação do governo.
O Departamento de Justiça informou quase imediatamente ao tribunal que recorreria da decisão, o que reacendeu os temores de que os americanos mais pobres não recebam seus benefícios integrais para comprar alimentos neste mês, deixando muitos em risco de dificuldades financeiras iminentes e graves.
Dezenas de beneficiários do SNAP contaram ao jornal americano New York Times como estavam lidando com a situação, revelando ansiedade e as difíceis escolhas que tiveram que fazer nos últimos meses.
Arianna Payton, de 25 anos, entrou sorrateiramente no estacionamento de um loja da rede Walmart na noite de terça-feira, em Granada, Colorado. Ela entrou em uma caçamba de lixo.
— Peguei o máximo que pude — disse ela. — Eu nem me preocupei em verificar se era seguro.
Ao chegar em casa, ela inspecionou tudo. Pegou alguns sacos de vegetais congelados, shakes de substituição de refeição, queijo e frutas. Também encontrou alguns pães mofados que achou que poderia aproveitar. Na semana passada, Arianna, que tem problemas de saúde há anos e vive de auxílio-doença, tentou o único banco de alimentos próximo.
— Tudo tinha acabado — contou.
Mary Schiely, de 49 anos. não consegue escapar do SNAP. O tema a consome em casa e a segue até o supermercado, onde trabalha há quase 15 anos. A maioria dos clientes da loja depende do SNAP, disse ela, e ela também.
Décadas atrás, em Middletown, Ohio, onde o vice-presidente JD Vance cresceu, as famílias trabalhavam em fábricas e recebiam um salário fixo. Mas agora, Mary consegue sentir o sofrimento da cidade pelas vendas da loja. Esta semana, as compras de doces caíram bastante. Pizzas, salgadinhos e bebidas energéticas não estavam saindo das prateleiras tão rápido quanto o normal.
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— O Dia de Ação de Graças está chegando — disse ela. — E ninguém sabe ao certo como vai lidar com isso.
Mary também depende dos benefícios do SNAP, quase US$ 500 (cerca de R$ 2,7 mil) por mês, que complementam seu salário de US$ 12 por hora. O salário dela é consumido com aluguel, luz, celular e internet.
— [O SNAP] é o que garante comida na mesa — disse.
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‘Não tenho para comprar uma lata de leite para ele’
Latrica Williams, de 26 anos, não recebe o auxílio do SNAP desde o início de outubro. Seu bebê, de 4 meses, nasceu com um problema cardíaco e precisa de uma fórmula especial que não cause alergias. A jovem, que vive em Milwaukee, pagava pelo suplemento com uma combinação de programas federais, incluindo o SNAP.
— A fórmula é muito cara — disse Latrica. — Custa uns US$ 75 (R$ 400) a lata, e eu não tenho para comprar uma lata de leite para ele.
‘Isso pode acontecer com qualquer um num piscar de olhos’
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Há um ano, Andrea Grimaldi, de 55 anos, era quem doava para os necessitados. Este ano, ela é quem recebe doações. Andrea foi demitida em fevereiro de um emprego como especialista do programa Head Start, no Departamento de Saúde e Serviços Humanos. Ela recebeu seu último salário em maio.
Embora o estado da Virgínia vá subsidiar os benefícios do SNAP até novembro, ela começou a racionar por precaução. Ela ainda tem US$ 176 dos US$ 292 (R$ 943 dos R$ 1571) de benefícios mensais do SNAP referentes a outubro. Familiares e amigos também organizaram entregas de alimentos e cartões-presente.
Ela cortou gastos, incluindo serviços de streaming e aplicativos de transporte, mas foi obrigada a usar suas economias. Neste meio tempo, ela se candidatou a vagas de emprego por meses, sem sucesso. Ela nunca imaginou que precisaria de benefícios do governo, incluindo o SNAP.
— Isso pode acontecer com qualquer um num piscar de olhos — disse ela.
Eles também podem perder o SNAP
Por volta do meio-dia de domingo, Wesley Peake Jr., de 51 anos, estava sentado em seu andador com rodas do lado de fora de um supermercado em Tucson, Arizona. No café da manhã, ele comeu biscoitos e queijo e agora, com a fome aumentando lentamente, sua mente evocava imagens de suas comidas favoritas. Frango, iogurte, bananas.
Mas Peake, que é sem-teto, não tinha dinheiro. E seu benefício mensal do SNAP, de US$ 57 (R$ 305), pode não chegar como de costume em 8 de novembro.
A comida que o SNAP fornece geralmente dura cerca de quatro dias para ele. Isso é uma grande ajuda, porque significa menos viagens a um refeitório comunitário. Sua osteoporose enfraqueceu seus ossos.
— Não consigo andar muito bem, porque minhas articulações do quadril estão se deteriorando — disse.
Ele fica sentado do lado de fora do supermercado, esperando que os transeuntes lhe deem algumas moedas. Ultimamente, ele tem relutância em pedir ajuda diretamente às pessoas. Eles também podem perder o SNAP. (Com NYT)

