À primeira vista, a exposição “O avesso do tempo”, no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, parece reunir reproduções de obras incontornáveis da história da arte europeia, como “A barca de Dante”, de Delacroix, “Rainha Isabel da França a cavalo”, de Velázquez, e “Retrato de Maerten Soolmans”, de Rembrandt. Ao se aproximar, o visitante se dá conta de que todos os personagens dessas pinturas têm o mesmo rosto: o do artista franco-beninense Roméo Mivekannin, autor da mostra. Pintadas em lençóis, as releituras de Mivekannin pendem do teto do MAM, o que dá um ar fantasmagórico às figuras, cujo olhar esfíngico interroga o público.
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Em cartaz até 16 de novembro, “O avesso do tempo” é um dos destaques da Temporada França-Brasil, série de eventos que visa a fortalecer a cooperação cultural entre os dois países e será realizada até dezembro em 15 cidades. Nascido na Costa do Marfim e criado no Benim, Mivekannin estudou Arquitetura na França e, após entregar o diploma ao pai, recebeu a “autorização” para ser artista.
— Para o meu pai, ser artista não era um trabalho sério — brincou o pintor na abertura da exposição, emocionado por apresentar suas obras num “templo da rainha Lina Bo Bardi” (a arquiteta ítalo-brasileira responsável pelo projeto do Masp, em São Paulo, restaurou o Solar do Unhão, onde funciona o museu).
Mivekannin afirma que “O avesso do tempo” propõe conexões entre o passado e o futuro: o rosto negro nas obras clássicas serve para pôr em primeiro plano as experiências africanas que a história oficial (da arte, inclusive) se esforçou para ocultar. Representar a si próprio com a postura e as vestes de aristocratas europeus é um gesto “irônico” e quase “teatral”, diz o artista. O olhar duro e desconfiado sustentado nas pinturas, explica , não pretende intimidar o espectador, mas convidá-lo a reconhecer si mesmo na diferença. Mivekannin sempre procurou essa “humanidade comum” quando percorria museus europeus, embora muitas vezes não encontrasse neles nenhum vestígio de sua herança africana.
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— Quando alguém vai da África para a Europa, como eu, rapidamente se depara com a inexistência da nossa história nas universidades e nos museus. Ela não faz parte do cânone. No fim, aprendi a reconhecer a mim mesmo nesses lugares e a encontrar neles uma sensação de familiaridade. É como se ao refazer um gesto de Rembrandt de quatro séculos atrás eu encontrasse nele um parente — diz Mivekannin. — Somos todos parte da imensa família humana. Se formos procurar, certamente vamos achar um tio em comum.
O suporte escolhido para as obras também evoca a questão do pertencimento. Mivekannin pinta em lençóis de casal usados e lavados de acordo com rituais do vudum, religião originária do Benim. Decidiu transformá-los em telas ao se dar conta das múltiplas memórias que podem guardar os lençóis do enxoval de uma noiva: do amor, do parto, da violência sexual.
— Já vi o sobrenome da família do noivo, que a mulher vai adotar após o casamento, bordado nos lençóis do enxoval. Isso é belo e é trágico como a imigração: você se aproxima do outro, é transformado pelo encontro, mas perde um pouco da sua identidade nesse mesmo encontro. Os lençóis dizem tudo isso sem que eu precise pintar neles a minha história — afirma o artista, que partiu para a França aos 18 anos.
Mivekannin descende de Beanzim, último monarca de Daomé, reino que se desenvolveu na região do Benim entre os séculos XVII e XIX e foi derrubado pela colonização francesa. No início do século XIX, Na Agontimé, rainha de Daomé e antepassada do artista, foi traficada como escravizada para o Brasil. Por conta dessa ligação trágica e ancestral como o país, Mivekannin sentiu uma certa “nostalgia” ao andar por Salvador, embora fosse sua primeira vez na Bahia:
— Estou muito emocionado por estar aqui, num lugar que eu conhecia só pelos livros. Caminhando por Salvador, senti o Benim presente nos cheiros, nas cores, na comida, nos rostos. Apesar da barreira linguística, foi como um sonho, como se eu tivesse voltado para casa.
Antes de aportar na Bahia, a mostra “O avesso do tempo” foi apresentada no Louvre Lens, filial do famoso museu parisiense no Norte da França. A versão brasileira traz uma obra inédita, pintada não em um lençol, mas em uma tela de veludo: “As duas irmãs, baianas: um ícone cultural do Brasil.” Dos pés à cabeça, as duas mulheres ostentam a indumentária do candomblé — e desafiam o público com o olhar inquisidor e inconfundível de Mivekannin.
*Ruan de Sousa Gabriel viajou a convite da Temporada França-Brasil.