Sarah Hills estava preocupada com o coração. Seu Oura Ring, um dispositivo vestível que rastreia dados biométricos dos usuários — incluindo temperatura corporal, frequência cardíaca e níveis de oxigênio no sangue — estava indicando que algo podia estar errado.
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O anel apresenta alguns de seus dados na forma de pontuações, como uma pontuação de “preparo”, que usa “qualidade do sono, sinais corporais e níveis de atividade para mostrar o quão preparada você está para enfrentar o dia”, segundo a empresa Oura. Desde que recebeu o anel de presente de Natal, Sarah havia começado a verificar compulsivamente suas estatísticas. Se suas pontuações não fossem boas, a jovem de 22 anos disse que ficava ruminando sobre isso.
Quando suas estatísticas oscilaram este ano, ela tentou consultar um médico. Como não conseguiu um horário com rapidez suficiente, Sarah, recém-formada pela Providence College, e uma amiga foram até uma farmácia, onde ela gastou 50 dólares em um medidor de pressão arterial doméstico, para tentar acalmar a mente.
— Nesse ponto, eu pensei: ‘Meu Deus, esse negócio está literalmente destruindo minha mente’ — disse ela.
Eventualmente, Sarah conseguiu consultar um médico, que lhe disse que ela estava saudável. Mas fez uma recomendação: considerar deixar de usar o anel.
Na eterna busca humana por autoconhecimento, é tentador agarrar-se a cada pequena informação que conseguimos extrair. Se você pudesse saber, por exemplo, não apenas que dormiu 6,5 horas na noite passada, mas também que 12% desse tempo foi em sono REM e que sua “eficiência de sono” — tempo dormindo em comparação ao tempo acordada — foi de 85%, como muitos dispositivos vestíveis informam, por que não saber?
Pelo menos, esse é o pensamento de muitas pessoas em nossa era do “eu quantificado”, em que coletar montes de dados sobre nossos corpos diariamente parece prometer uma vida mais feliz e saudável. Mas e se todos esses dados também estiverem aumentando nosso estresse? Existe uma métrica para isso?
Enquanto alguns usuários do Oura dizem gostar do anel como uma forma sem telas de acompanhar o corpo, vários donos do dispositivo, incluindo Sarah, relataram sentir-se cada vez mais ansiosos com o uso. Em vez de ajudá-los a sentir-se mais no controle de seu bem-estar, os dados só os faziam fixar-se em problemas potenciais — e muitas vezes inexistentes.
Pode-se chamar isso de paranoia do Oura, embora o fenômeno esteja longe de ser exclusivo de um único produto: à medida que a tecnologia vestível de saúde — como Apple Watches e Fitbits — se tornou mais popular nos últimos anos, alguns usuários vêm enfrentando efeitos psicológicos colaterais indesejados.
Eli Rallo, escritora e criadora de conteúdo de 26 anos, disse que checava sua frequência cardíaca “24 horas por dia, 7 dias por semana” depois de ganhar o anel de presente em 2023. Quando mencionou a preocupação com a frequência aparentemente elevada durante um check-up de rotina, o médico a tranquilizou e disse que estava tudo bem.
— Eles eram tipo anti-Oura Ring — contou Eli, que vive entre Houston e Nova York. — Diziam: ‘Essas informações simplesmente não são necessárias para uma pessoa saudável e com corpo funcional’. (Eli observou que tem diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo, que segundo ela estava mal controlado na época. Sentiu que sua condição piorou com o uso do anel.)
No fim das contas, uma terapeuta recomendou que ela deixasse de usar o dispositivo. E ela seguiu esse conselho.
Hannah Muehl, assistente médica e nutricionista em Pittsburgh, na Pensilvânia, disse que a constatação quantificada de que não estava dormindo bem tornava ainda mais difícil conseguir descansar. Comprou o anel após o nascimento do filho, para acompanhar as noites sem dormir durante a amamentação.
— Ele coloca uma ação sobre coisas que deveriam ser naturais, como lembrar você de descansar, lembrar de dormir, todas essas coisas que não deveriam precisar ser práticas controladas — disse Hannah. — Quando você transforma isso em metas, algo que você se esforça para alcançar, então já não está mais descansando de verdade.
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— Eu sentia que não conseguia fazer nada certo para agradar o anel — contou Abi Caswell, dona de uma padaria em Nova Orleans.
Ela comprou o anel pouco mais de um ano atrás, interessada no recurso de monitoramento de temperatura para planejamento familiar. Gostou da ideia de não ter que “lembrar de pegar o termômetro todas as manhãs”, disse Abi, de 29 anos.
Desencantou-se com o dispositivo ao abrir sua segunda padaria. Foi um período intenso, e os lembretes constantes do anel só reforçavam o que ela já sabia: — Meu corpo estava no modo máximo de sobrecarga — disse.
Ver aquilo traduzido em dados só piorava os sentimentos negativos — como dar a uma pessoa em crise o conselho inútil de que ela “só precisa se acalmar”. — Estava me estressando ainda mais pensar no quanto eu estava estressada — disse Abi — e no quanto eu não conseguia dar ao meu corpo e à minha saúde a atenção que precisavam.
Não muito depois do lançamento do primeiro Fitbit, em 2009, e do primeiro Apple Watch, em 2015, os potenciais riscos de uma tecnologia tão integrada aos processos naturais do corpo começaram a ficar evidentes. Ao longo da última década, muitos relataram que dispositivos vestíveis pioraram transtornos alimentares e desencadearam comportamentos obsessivos.
Ainda assim, o canto da sereia desses dispositivos continua forte para algumas pessoas, que talvez se beneficiassem mais simplesmente evitando o mais novo relógio ou anel inteligente.
— Existem muitas crises acontecendo — afirmou Deborah Lupton, socióloga e autora de The Quantified Self: A Sociology of Self-Tracking — e as pessoas estão ávidas por qualquer produto que lhes prometa “ao menos algum controle sobre aspectos da vida cotidiana, da saúde e do bem-estar”. (Ela observa, no entanto, que ter acesso a uma tecnologia tão cara — o modelo mais recente do Oura Ring parte de 349 dólares — é um privilégio.)
A proliferação de tecnologias criadas para rastrear nossa biologia também pode fazer com que esqueçamos que os seres humanos são bastante capacitados para isso por conta própria, disse Jacqueline D. Wernimont, professora associada do departamento de estudos de cinema e mídia da Dartmouth College, especialista em histórias da quantificação.
— A tecnologia vestível retira a autoridade e o conhecimento do indivíduo e os transfere para uma entidade externa, um dispositivo que a pessoa então precisa consultar para tentar decifrar ou entender o próprio corpo — afirmou Jacqueline, autora de Numbered Lives: Life and Death in Quantum Media.
— Isso, por si só, já produz um certo tipo de ansiedade — acrescentou.
Shyamal Patel, vice-presidente sênior de ciência da Oura, reconheceu que, às vezes, ter acesso a tantos dados pode ser estressante para alguns usuários — ele incluído. De vez em quando, disse, faz pausas no uso do anel quando se sente sobrecarregado.
— Acho que cabe a nós, como indivíduos e usuários, decidir como vamos usar essa tecnologia — afirmou Patel. — Para que ela nos sirva, e não o contrário.
Ele também ressaltou que os usuários devem tomar cuidado para não comparar seus dados biométricos com os de outras pessoas. Alguns acham isso difícil, especialmente com as redes sociais amplificando histórias de pessoas que afirmam que seus dispositivos vestíveis as alertaram para problemas médicos sérios.
— Eu soube que estava com câncer antes de ser diagnosticada, por causa do meu Oura Ring — disse Nikki Gooding, enfermeira de 27 anos em Richmond, Virgínia, em um TikTok amplamente compartilhado em março. O atleta paralímpico Hunter Woodhall afirmou que seu anel “pode ter salvado minha vida” após ajudá-lo a buscar tratamento para apendicite.
Nikki, que foi posteriormente diagnosticada com linfoma, explicou que os alertas diários do anel indicavam “sinais importantes de algum tipo de estresse físico”. Sua temperatura corporal estava consistentemente mais alta que o normal, disse em entrevista.
— Por favor, não deixem isso assustar vocês!! — escreveu Nikki depois, num comentário no próprio vídeo, respondendo a várias pessoas que disseram que a história dela era o motivo pelo qual nunca usariam um Oura Ring.
— Atendo muitos pacientes com ansiedade relacionada à saúde, então eu entendo — disse ela.
Atualmente, Hannah, a assistente médica de Pittsburgh, disse que deixou de usar o anel de vez. Voltou a usar um pedômetro tradicional para contar passos. Abi, a dona da padaria, ainda usa o dela. Disse que só confere os dados duas vezes por dia. Sarah deixou o monitor de pressão na casa dos pais. Ainda dorme com o anel algumas noites por semana.
Jacqueline, a professora de Dartmouth, contou que frequentemente tem conversas em sala de aula com alunos excessivamente dependentes da experiência quantificada, que se concentram nos dados e confiam mais nas métricas do que nas próprias sensações físicas e experiências diretas.
— Eles dizem: ‘O aparelho disse isso…’ ou ‘O monitor indicou aquilo…’, e eu pergunto: ‘Mas o que seu corpo disse?’