Músico, jornalista e autor de livros sobre música, o americano Elijah Wald se gaba de ter tido sorte com o cinema duas vezes. Uma com “The mayor of Macdougal Street: A Memoir” (2005), autobiografia por ele finalizada do cantor e compositor Dave Van Honk (1936-2002), lendário pioneiro do revival do folk nos anos 1960 — o livro inspirou o filme “Inside Llewyn Davis: Balada de um homem comum” (2013), dos irmãos Joel e Ethan Coen. A outra, com “Dylan elétrico: do folk ao rock”, originalmente lançado em 2015, que chega ao Brasil traduzido, pela editora Tordesilhas, bem no momento em que o longa-metragem baseado nele, “Um completo desconhecido” (2024), indicado a oito prêmios Oscar, desde o dia 16 no streaming Disney +.
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O livro de Wald fala do renascimento do folk e da cena nova-iorquina à qual um Bob Dylan de 19 anos chega, em janeiro de 1961, e logo desponta como um grande talento, até o momento em que ele decepciona os puristas do folk fazendo um show bombástico, com instrumentos elétricos, no festival de Newport de 1965. O escritor jura, em entrevista por Zoom, que a obra só nasceu por causa do vil metal:
— Percebi que o 50º aniversário daquele show estava chegando e que ainda dava tempo de fazer um livro sobre ele. Liguei para a minha agente e ela disse: “Sim, faça isso!”. E esse livro acabou me rendendo três vezes mais do que qualquer outro que já fiz, pude viver por quase três anos só com ele. No final das contas, achei o trabalho interessante, mas a ideia original era apenas a de algo que eu pudesse fazer rapidamente e que pagasse muito bem.
Para Elijah Wald, a história do incidente “que transformou Bob Dylan em Stravinsky” até então tinha sido muito mal contada “porque quem a contava eram sempre os fãs de rock, e, para eles, era uma história muito simples, na qual Dylan era um gênio e os idiotas do folk o vaiaram”:
— Só que, se você olhasse com atenção, veria que essa é uma história bem mais complicada. Dylan sempre fazia escolhas inesperadas. Dois anos antes, ele havia decidido parar de fazer música política. Antes disso, ele decidiu começar a fazer música política, o que também foi inesperado. Ele fez muitas escolhas estranhas, como a de deixar Minneapolis e pegar carona até Nova York para ver (o cantor de folk) Woody Guthrie (1912-1967) no hospital. Mas lembremos que ele era muito jovem.
Para Wald, o livro ter inspirado “Um completo desconhecido” “foi como ganhar na loteria”.
— Essa é a loucura, foi uma ideia de Bob Dylan. Pelo que entendi, Dylan e sua equipe asseguraram os direitos do livro, depois contrataram Jay Cocks (roteirista, que conheceu o cantor em 1964 e escreveu sobre ele para um jornal do colégio), Timothée Chalamet (ator que interpreta o cantor) e só aí chamaram (o diretor) James Mangold. Tudo veio do pessoal do Dylan — diz ele, que gostou muito do resultado do filme. — Acho que eles fizeram um bom trabalho. Quer dizer, é um filme altamente ficcional, mas é ficcional de uma forma muito fiel aos personagens, ao lugar e à época. E eles fizeram um ótimo trabalho com a música.
Dois grandes mitos cercam a apresentação de Bob Dylan em Newport em 1965. Um é a de que o seu mentor e pessoa que o acolheu em Nova York, o cantor Pete Seeger (1919-2014), teria ficado enfurecido com o show elétrico de Dylan e teria tentado cortar os cabos do equipamento de som com um machado. Outro, o de que nenhum outro artista havia tocado no festival, seja naquele ano ou antes, com instrumentos ligados em amplificadores:
— O problema com Dylan não era que ele fosse elétrico. Parte do problema é que aquilo era muito barulhento. E a outra parte é que não era exatamente aquilo que se esperava dele no festival. São coisas que o filme não aborda.
Elijah Wald toca a real: aquele show do cantor em Newport com sua banda em 1965 foi horrível.
— Eles ficaram no palco por 20 minutos e tocaram apenas três músicas. Aí ficaram parados por dois minutos sem fazer nada. Tocaram uma música, ficaram parados por mais dois minutos e então tocaram outra música — descreve. — O curioso é que até então Dylan sempre tinha sido um performer, ele não ficava parado no palco, na verdade ele sempre falava, era engraçado e amigável… Ali, ele simplesmente não estava lidando com o público. Olhando para trás, a música era incrível, mas do ponto de vista de quem estava sentado ali, assistindo, não foi um bom show.
Como muitas das pessoas que escreveram sobre Bob Dylan, Elijah Wald nunca falou com o próprio. Mas é claro que gostaria de falar.
— Sabe de uma coisa? Se algum dia eu conversar com Bob Dylan, será porque escrevi um livro sobre (o mítico cantor de blues) Robert Johnson! Dylan não precisa falar com escritores interessados em Bob Dylan! — assegura o autor, que, assim como foi um dia com o seu objeto de estudo, persegue uma carreira de “cantor folk vagabundo errante”. — O modelo para nós dois foi o livro de Woody Guthrie, “Bound for glory” (autobiografia parcialmente ficcional). E isso é algo que as pessoas não entendem. O verdadeiro fascínio de Dylan por Guthrie era menos pelas músicas do que pelo personagem. Nós dois lemos aquele livro e quisemos ser aquela pessoa!
O livro mais recente de Elijah Wald é “Jelly Roll Blues: Censored songs and hidden histories”, do ano passado.
— O livro surgiu do fato de (o pianista e cantor) Jelly Roll Morton ter feito algumas gravações para a Biblioteca do Congresso em 1938, que foram mantidas ocultas até a década de 1990 por usarem o que era considerado linguagem obscena. Me interessou saber o que mais havia sido ocultado ou não registrado porque pessoas da classe trabalhadora falavam como pessoas da classe trabalhadora — conta. — Então, o que o livro realmente aborda é como o blues era antes de ser mercantilizado, como era antes de ser censurado e até que ponto nossa imagem desse mundo é falsa, porque as pessoas não estavam dispostas a publicar a linguagem e as histórias reais. Jelly Roll Morton conhecia aquele mundo muito bem e era um contador de histórias brilhante.
Apresar de nunca ter estado no Brasil, Wald diz conhecer a música de Caetano Veloso do começo da carreira e a de Daniela Mercury da época do álbum “Feijão com arroz” (1996) (“achei a música de Daniela mais emocionante do que muito daquilo que os intelectuais gostam”, confessa). Hoje em dia, ele acredita que não seria possível o surgimento, entre os jovens talentos, de um novo Bob Dylan.
— Em primeiro lugar, hoje não há uma música que todos estejamos ouvindo, estamos todos em nossos próprios mundinhos. Além disso, Dylan não poderia ter sido Dylan sem os Beatles e os Beatles não poderiam ter sido os Beatles sem Dylan. E nenhum deles poderia ter sido nada disso sem Elvis Presley — diz o escritor, que, hoje, aos 66 anos, não tem ouvido tanta música nova. — Acho que a maioria das pessoas da minha idade, quando ouve algo novo, pensa: “Ah, sim, já ouvi coisas assim antes.” É difícil ficar tão animado. Gosto da Beyoncé, mas ouço os seus discos? Não, nem tanto. Há muita gente agora que eu gostaria de ver ao vivo e pouquíssimas de quem eu queira ouvir um disco.

