Assistir a Beth Goulart em “Simplesmente eu, Clarice Lispector” é presenciar um encontro entre a atriz e a personagem, em que a palavra ganha corpo, alma e pulsação. Para Beth, não se trata apenas de interpretar a escritora, mas ser atravessada por ela, como se a autora de “Hora da estrela” voltasse à vida para questionar e provocar o público com a mesma delicadeza cortante de seus textos. Depois de passar pelo Teatro Prio, no Jockey Club Brasileiro, a peça, com direção da própria Beth, entra em cartaz na sexta-feira que vem, no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, com o desejo de lotar os 800 lugares — capacidade duas vezes maior do que a do espaço anterior.
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— Aumentou a minha responsabilidade, mas Clarice tem magia. Começamos aos poucos, e o público vai aumentando, nos surpreendendo com plateias lindas e maravilhosas, como se fosse uma corrente do bem de cultura. Dá vontade de ver o espetáculo mais de uma vez e, assim como acontece com os livros da Clarice, toda vez você aprende uma coisa. Teatro é uma arte linda e lúdica, viva e necessária, e as pessoas estão sentindo necessidade dessa força ao vivo em tempos virtuais — avalia a atriz.
Onze anos depois do fim da primeira temporada (a peça estreou em 2009, ficou em cartaz até 2014 e voltou em 2025), e nos seus 50 anos de carreira, Beth evoca Clarice com uma reverência sutil. Há em sua presença uma entrega absoluta.
— O incrível é a beleza do tempo que esse texto ficou dentro de mim. Sempre buscamos que eles sejam orgânicos, e o meu amadurecimento, as experiências que eu vivi e o tempo o aprimoraram. Hoje sou uma atriz mais madura e vejo a vida de outra maneira. Isso passa para a interpretação e enriquece o trabalho — conta.
O tempo passou, mas Beth não alterou a estrutura da peça, que tem supervisão artística de Amir Haddad.
— O público mudou. É uma nova geração que está tendo contato com Clarice e que busca sua obra, ainda mais agora com ela no vestibular (da Uerj, que selecionou a obra “Amor” para o 1º Exame de Qualificação). Além disso, todos vivemos uma pandemia. Isso nos transformou, e somos pessoas diferentes em dez anos de vida — expressa.
O monólogo, criado a partir de entrevistas, cartas, depoimentos e trechos de obras, não tem pressa. Os leitores vão reconhecer trechos de “Perto do coração selvagem” e “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” não só nas palavras (que carregam até o sotaque da autora), mas também em cada pausa.
— Hoje sou uma atriz mais tranquila e lido melhor com o tempo, que tira a ansiedade. Entendi que não é preciso acelerar o tempo das falas, que posso respirar e deixar essa pausa fazer parte do texto. O silêncio também é comunicação, e quando você domina isso, agrega ao trabalho. O roteiro busca apresentar para o público a mulher por trás da autora, uma pessoa que era à frente de seu tempo, ousada, criativa e bem-humorada em seus escritos. Queria mostrar que ela tem angústias e questionamentos como qualquer um de nós. É uma autora que se revela em cada personagem; sentimos o seu pensamento e presença — afirma.
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A atuação de Beth mostra que ela foi transformada por Clarice e suas palavras. Com a peça, a atriz dá ao espectador a chance de vivenciar o mesmo.
— Percebi que, quanto mais perto eu estivesse de mim, mais perto dela eu estaria. É um encontro de almas, casamento entre atriz e personagem, palco e plateia, público e teatro. Sou devota do amor como salvação da humanidade, e esse é o sentimento mais presente na obra de Clarice — define Beth.
Após cada sessão, a atriz realiza um sorteio de livros de Clarice Lispector. De 2009 a 2014, a montagem percorreu mais de 280 cidades brasileiras e foi vista por mais de 1,2 milhão de pessoas. Foi com esse trabalho que Beth conquistou os prêmios Shell, APTR, Contigo e Qualidade Brasil de melhor atriz. Neste último, o monólogo também venceu na categoria de Melhor Espetáculo. A nova temporada fica em cartaz até o dia 22 de junho.
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Ao se despedir do Teatro Prio, Beth Goulart dá lugar à colega Ana Beatriz Nogueira, que estreia, também na próxima sexta-feira, o monólogo “Tudo que eu queria te dizer — 15 anos depois”. O solo marca o reencontro da atriz com um de seus trabalhos mais emblemáticos. A nova temporada, que segue até 1º de junho, tem direção de Victor Garcia Peralta.
O retorno celebra os 15 anos da estreia original do espetáculo, baseada no livro homônimo de Martha Medeiros, e acontece logo após Ana vencer o Prêmio APTR de melhor atriz com “Sra. Klein”.
— Sinto que o texto da Martha permanece muito atual, mas ganhou outros significados. Na verdade, fui eu que mudei e passei a dar novos contornos a ele. O espetáculo é leve para o público, mas, ao mesmo tempo, é muito interessante, tem bastante humor. Uma novidade linda e muito bacana é que temos uma música que a Zélia Duncan escreveu junto com o Juliano Holanda e cedeu para o nós. Ela se chama “Vou gritar seu nome” — adianta Ana Beatriz.
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No espetáculo, Ana Beatriz Nogueira se desdobra em seis personagens femininas que expõem suas emoções por meio de cartas que abordam temas como amor, saudade, ética e rejeição. O solo preserva a estética minimalista que marcou a montagem original: sem cenário elaborado ou mudanças de figurino, mas com foco na palavra e na atuação.
— Em 2010, a peça era feita com muitos movimentos de corpo e deslocamentos em cena. Agora, ela está mais concentrada. É um exercício representar aquelas mulheres e observar como já estão dentro da gente. Gosto de todas as personagens, mas especialmente da Clô, uma senhora idosa que conversa com o marido que já se foi. Ela fala sobre a terceira idade, etarismo e o olhar tão limitado que a sociedade tem sobre essa fase da vida. Tudo isso sem perder o humor, apesar de ser triste. Em todas as personagens existe esperança — completa Ana Beatriz.
Aos 82 anos e com 65 de carreira, a atriz Ítala Nandi mostra que é possível iniciar projetos em qualquer idade. Ela acabar de estrear no Teatro Poeirinha, em Botafogo, o espetáculo “Paixão viva”.
Escrito em parceria com o cineasta Evaldo Mocarzel, que também assina a direção, o monólogo celebra sua trajetória no teatro, no cinema e na televisão.
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Ítala transforma o palco em um território íntimo e político, revisitando suas experiências pessoais e profissionais com intensidade e liberdade.
— Sinto que é o meu trabalho mais difícil, e foi Fernanda Montenegro quem me entusiasmou quando disse que eu tinha que fazer um monólogo. Mas é muito difícil, porque é cheio de momentos e passados complexos, bons e históricos do país. Tive que rever períodos como a invasão do Teatro Oficina, em 1º de abril de 1964. Eu tinha 22 anos. Vivenciar os dramas e as tragédias não é fácil, mas a peça representa a minha alegria de estar com 82 anos e falar sobre uma carreira que foi alegre, difícil e brilhante muitas vezes. Muitas pessoas gostariam de vivenciar algo parecido — diz Ítala.
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Uma das figurais centrais no surgimento da companhia Teatro Oficina, musa do cinema nacional por quase duas décadas e protagonista do primeiro nu feminino no teatro brasileiro, Ítala marcou gerações com seu trabalho. Em “Paixão viva”, ela revive personagens, recria diálogos com nomes que marcaram sua vida e reafirma sua trajetória de coragem e entrega à arte.
— É um prazer poder contar fatos que eu tive a alegria de viver. É uma paixão viva, é presente e passado, é um monólogo repleto de imagens — adianta.
A montagem mistura memória, projeções e presença cênica num fluxo contínuo entre passado, presente e futuro. Além de uma homenagem à própria trajetória de Ítala, é um convite à reflexão sobre a arte, a liberdade e o amor como motores da existência.
— No palco, transitamos entre os tempos, podemos vivenciar momentos históricos. Ser intérprete é isso, é mentir, mas sendo verdadeiro — diz.
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Companheiros de Ítala no Teatro Oficina, Amir Haddad e Renato Borghi sobem juntos ao palco pela primeira vez em “Haddad e Borghi: Cantam o teatro, livres em cena”. A estreia está marcada para a próxima sexta-feira, no Teatro Adolpho Bloch, na Glória. A direção é de Eduardo Barata, que também assina o roteiro ao lado de Elaine Moreira. Aos 88 anos, os artistas comemoram sete décadas de amizade com uma obra que celebra a liberdade cênica e a profunda ligação entre teatro e vida.
— Foram muitos encontros relembrando nossas histórias, os fatos de cada época e as músicas para que o roteiro fosse montado. Não trabalhava com o Amir desde 1959. O reencontro está sendo maravilhoso — conta Borghi.
O espetáculo propõe uma experiência sensorial, com ambientação que começa já no foyer do teatro, trazendo referências a ópera, artes visuais, carnaval e música brasileira. Nomes como Elis Regina, Lygia Clark, Charles Gounod e Hélio Oiticica inspiram essa celebração poética. O elenco — formado também por Débora Duboc, Duda Barata, Élcio Nogueira e Máximo Cutrim, que interagem com os protagonistas, fazendo perguntas que eles precisam responder — recepciona o público com textos de Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Carlos Drummond de Andrade, enquanto a trilha sonora ao vivo mescla clássicos da música brasileira e composições criadas para outras peças de teatro.
Mais que uma homenagem, o espetáculo é um testemunho da trajetória de dois personagens que contam parte da história do teatro moderno no país.
— Nós estamos livres em cena. É um espetáculo que vai mudar todos os dias. Odiaria se fosse diferente, não gosto de teatro engessado, com o ator decorando o texto. A plateia vai assistir a dois atores contando suas histórias em cena. Cada dia vai ser uma emoção nova, um novo relato. Teatro tem que ser assim, vivo— afirma Amir.