Nascido e criado no Vidigal, Daniel Rodrigues Martins, o Boquinha, é a personificação de uma história feita de coragem, resiliência, movimento, resenha e sorriso. Barista renomado, ele transformou a paixão pelo café em uma carreira que o levou do Leblon às Maldivas, de São Conrado ao Uruguai, conquistando admiradores por onde passa. Aos 40 anos, o que torna o carioca um personagem tão singular não é apenas seu talento profissional, e sim a forma como mantém viva sua conexão com a comunidade: prepara cappuccinos, distribui leite de aveia, organiza eventos e inspira pessoas com sua alegria, seus sorrisos e sua filosofia de vida baseada na generosidade e na simplicidade. É essa combinação de talento, dedicação e compromisso social que faz de Boquinha um destaque, alguém capaz de transformar cada xícara de café em um gesto de transformação e afeto. Filho de nordestinos que vieram do Ceará, de Guaraciaba do Norte, para trabalhar no Rio de Janeiro, ele cresceu cercado pelo esforço e pelo exemplo de seus pais.
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— Meu pai foi ajudante de cumim, garçom e chef de cozinha há 20 anos. Depois montou um bar no Vidigal. Minha mãe foi copeira no Hospital da Lagoa por 40 anos — lembra.
A vida não esperou para ensinar a Boquinha sobre responsabilidade. Sua rotina mudou drasticamente aos 14 anos, quando perdeu o pai por problemas de coração e teve que começar a trabalhar para ajudar em casa. Foi ajudante de supermercado, auxiliar de serviços gerais, auxiliar de padeiro e depois padeiro no supermercado Sendas, na Rua José Linhares, no Leblon. Foi nessa época que prometeu a sua mãe que nunca se envolveria com o tráfico e que aprendeu a importância da responsabilidade e de “se manter no movimento”, expressão comumente usada por ele. Chegou também a vender picolé nas areias do Leblon.
— O único ferro que eu pego é a chaleira — brinca, com orgulho.
Cada emprego foi uma lição, uma pequena escola da vida que moldou sua disciplina, a ética de trabalho e o amor pelo ofício. Com ensino fundamental e médio completos, ele brinca que fez a faculdade da vida. Mas foi nos primeiros empregos como auxiliar de cafeteria que Boquinha descobriu sua verdadeira paixão: o café. Trabalhou no Rubro Café, no Fashion Mall, e depois em um grupo que fornecia café para grandes redes, onde começou a ministrar treinamentos. Era o início de sua carreira como barista.
— Costumava pegar onda, e meu pai sempre me dizia para levar café para dar energia. Quando comecei na cafeteria, comecei a observar o trabalho. Logo comprei um moinho e uma garrafa térmica. Levava para a praia a garrafa com água quente e triturava na areia o café. A galera ficava curiosa, e eu explicava. Os surfistas viraram minhas cobaias, e na comunidade falava para a galera experimentar. Foi a faculdade da vida — relata.
O apelido não é à toa. Aos 12 anos, caiu da laje quando soltava pipa e perdeu todos os dentes, levando mais de 200 pontos. Ele era magrinho e ficou com a boca muito inchada. Foi quando começaram a chamá-lo de Boquinha. Mas nem com a dor deixou de sorrir.
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A chegada do leite vegetal ampliou o horizonte de Boquinha e transformou seu olhar sobre a profissão, expandindo seu universo. Ele começou a trabalhar com a marca Naveia há cinco anos e se apaixonou pelo processo de criação, experimentação e conexão que o produto proporcionava.
— Eu brincava que era uma seita, mas, depois de dois anos de resistência, agora eu só tomo leite de aveia. Eu e uma galera aqui da comunidade. Até minha mãe já entendeu que temos que deixar as vaquinhas viverem as suas vidas. Minha mãe só não aprendeu a não colocar açúcar no café. Mas cola comigo que no caminho eu explico o resto — diverte-se.
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Felipe Melo (UFO), um dos fundadores da Naveia (“Meu presidente”, como diz Boquinha), conta que uma vez estava em um supermercado arrumando os produtos na prateleira quando uma pessoa se aproximou e disse que conhecia o Boquinha da Naveia. Espirituoso, Melo disse que o carioca do Vidigal mandava dentro da empresa:
— Conheço o Boquinha há muitos anos, desde nossas idas ao surfe no Leblon, e a amizade se fortaleceu graças a um amigo em comum, Marcos Sifu. Quando comecei a Naveia, soube que Boquinha havia se apaixonado pelo café e queria se dedicar a isso. Era a combinação perfeita. Ele começou como embaixador da marca no Rio e rapidamente se tornou parte da equipe, visitando cafeterias e participando de feiras no Brasil e no mundo, como em Montevidéu, em 2024. Ter o Boquinha na Naveia é uma honra e um privilégio. Eu brinco que ele é o nosso príncipe. Em dias estressantes de trabalho, quando ele aparece com aquele sorriso, eu até esqueço um pouco das dificuldades de empreender no Brasil. Ele carrega uma humildade rara, daquelas que ensinam. É impressionante o cuidado que ele tem com todos nos eventos. Trata clientes, parceiros e os próprios funcionários operacionais da mesma forma. Já vi o várias vezes saindo do estande para entregar cappuccino aos seguranças ou ao pessoal da limpeza, sempre com os mesmos sorriso e atenção. Ele faz a gente querer ser mais gente, sabe?
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As viagens pelo mundo foram consequência do reconhecimento de seu talento. Entre Maldivas, Uruguai e mais de 35 cidades do Brasil, Boquinha levou sua arte do café e da resenha para pessoas de diferentes culturas.
— Quando cheguei às Maldivas, chorei de emoção. O Marcelo Trekinho (surfista) me chamou para ir com ele, o Gabriel Pastori e outros amigos. Eu não tinha passaporte, mas o Sifu resolveu isso em uma semana. No Uruguai, servi um cara numa feira de café e, mesmo sem falar a língua, fizemos resenha por energia. Hoje estou aprendendo espanhol — conta, reforçando como sua prática vai além do preparo: é conexão humana, sorriso e aprendizado constante.
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O surfe, aliás, é parte central de sua vida. Começou com bodyboard aos 13 anos e depois passou para o surfe. Trabalhando no Leblon, na Praia do Vidigal e em São Conrado, ficou amigo da galera do esporte, incluindo Lucas Chumbo, Pedro Scooby, Ítalo Ferreira e Gabriel Medina. A convite de Pastori e Trekinho, passou a participar do canal Uaradei.
— Ele é sensacional, conquista todo mundo. Nossa conexão foi instantânea. Ele vem prosperando profissionalmente nos últimos anos e é admirável. Temos uma rotina diferente, mas sempre tentamos estar próximos dele; é um dos melhores amigos. Segunda é folga dele, e sempre vamos para a laje. Eu e o Trekinho queríamos “adotá-lo”, que ele fosse nosso, do Uaradei, porque ele não participa de todos os episódios nem de todas as viagens por causa do trabalho. E, por causa dele, a galera da comunidade também passou a conhecer a gente. Dentro do Vidigal, ele é como um prefeito. Acho que o segredo dele é a energia; passa uma positividade enorme, tem visão da vida, sabe aproveitar os momentos e está sempre com um sorriso — diz Pastori.
Boquinha também faz questão de destacar que sua jornada não é apenas profissional, mas de vida. Ele é pai de uma menina de 11 anos, Aryelle, tem duas irmãs e um irmão adotivo de 13 anos e mantém uma relação próxima com sua mãe e amigos do bairro. O café, o surfe e a gastronomia saudável são formas de transformar experiências, criar movimento e espalhar alegria. Ele valoriza a resenha e a amizade e acredita que pequenos gestos podem transformar vidas.
— O mundo é um movimento. Eu te ajudo para você ajudar o próximo, e depois vai chegar em mim — diz, sintetizando a filosofia que guia sua vida, baseada na simplicidade do sorriso, na energia positiva e na troca genuína entre pessoas.
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Apesar do sucesso e das viagens, Boquinha continua profundamente conectado ao Vidigal e nem pensa em morar em outro lugar. Para a comunidade, prepara café, distribui leite de aveia, doa metade das roupas que ganha e, ao lado de sua mãe, Maria do Carmo, organiza eventos para os moradores. Ela prepara comidas como cuscuz e baião de dois, enquanto ele faz cappuccinos e outras bebidas à base de café.
— Adoro fazer bagunça, reunir a galera. O próximo evento vai ser uma feijoada vegana. Já estou há um mês sem comer carne, influenciado pela equipe Naveia. Hoje tento mostrar para a comunidade que existem outras alternativas de alimentação. Até nos campeonatos de surfe já estou montando café da manhã vegano, e todo mundo gosta. O café mudou a minha vida, mas o leite de aveia também faz parte dessa história — destaca.
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Entre máquinas, moagem, cappuccinos e sorrisos, Boquinha constrói uma história tão rica quanto um café especial: intensa, complexa e cheia de sabor. Do Vidigal para o mundo, ele mostra que a vida pode ser transformada com dedicação, paixão e, claro, uma boa xícara de café.
Hoje, ele mantém sonhos ambiciosos. No ano que vem quer abrir uma cafeteria na sua laje que seja referência em café especial, com plantas, música e comida saudável, sem faltar resenha.
— Quero fazer uma cafeteria e ter o café torrando aqui com esse visual. Vai ser o Café do Boca, com cappuccino, pão de fermentação natural, uma verdadeira experiência na favela. Mês que vem vou para o Espírito Santo para aprender sobre a torra de café — adianta.