Vizinhos do Parque Piedade Arlindo Cruz, na Zona Norte do Rio, dois prédios da antiga Universidade Gama Filho continuam sem destino. Os imóveis, administrados pela massa falida do Grupo Galileo — último dono da instituição —, foram invadidos. Os gestores do fundo, que tem R$ 2 bilhões em dívidas a pagar, tentam a reintegração de posse na Justiça. Entre os ocupantes do prédio onde funcionava a Faculdade de Odontologia, estão 38 famílias de venezuelanos, que somam 190 pessoas.
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Há casais com até seis filhos, na maioria desempregados.
— Nós morávamos no Morro do Banco (Itanhangá). Mas, além dos tiroteios constantes, os aluguéis eram muito caros — contou Juan Ravago, de 35 anos, um dos moradores do prédio.
Ex-garimpeiro, que trabalhava em minas na Venezuela, Juan virou barbeiro no Rio de Janeiro. O salão improvisado fica em uma das entradas do prédio. O corte custa R$ 20.
Eduardo Hernandez, também venezuelano, diz que o grupo teme ser despejado e planeja se inscrever em programas sociais.
A prefeitura estudou a desapropriação total da UGF, mas desistiu. O administrador judicial Frederico Costa Ribeiro disse que a Justiça negou a reintegração de posse. Ele recorreu.
Placas de “vende-se” e “aluga-se”, na Rua Manoel Vitorino, em Piedade, ainda se espalham ao longo da via. Presentes na fachada de 15 imóveis e pontos comerciais, são marcas visíveis deixadas pelo fechamento, em 2014, da Universidade Gama Filho (UGF), instituição em torno da qual o bairro cresceu por décadas. Entre moradores e trabalhadores locais, a expectativa é que a situação comece a mudar a partir de amanhã, com a inauguração do Parque Piedade Arlindo Cruz, construído pela prefeitura em parte do terreno onde existiu a UGF.
No auge, nos anos 1980, a Gama Filho chegou a ter 30 mil alunos, que, além de frequentar o campus, movimentavam o comércio no entorno. Pelo menos 33 lojas e três estacionamentos vizinhos fecharam logo depois da universidade . O vazio deixado foi ocupado por moradores de rua, dependentes químicos, e muita gente decidiu se mudar, preocupada com a violência.
—Tive que gradear os fundos da minha casa para não correr o risco de ser invadida à noite. Muita gente se mudou por causa de assaltos. Fiquei porque a casa é própria — conta a aposentada Maria da Luz, de 78 anos, que mora há 52 anos na Rua Matriz Cintra, ao lado de um acesso do novo parque.
Maria da Luz foi aluna e funcionária da UGF, onde conheceu o marido, já falecido. Seus três filhos também estudaram lá — dois fizeram o curso superior e todos frequentaram o Colégio Piedade, que deu origem à universidade.
A aposentada ganhou uma vizinha antes mesmo do parque abrir. Há um ano, atraída pelo baixo custo dos aluguéis, a comerciante Rosângela Menezes da Costa abriu um bazar onde vende de doces a carregadores de celular, em boa parte para operários que trabalham no lugar:
—Vou fazer reformas e aumentar a oferta de mercadoria. O parque será um sucesso— acredita ela.
Em frente à entrada do parque, que ganhou calçadas largas e iluminação de LED, um ponto passa por reformas para alojar uma padaria.
Em um esforço para reforçar a sensação de segurança, o parque será a sede, na Zona Norte, da nova Força Municipal, que começa a trabalhar armada nas ruas do Rio a partir de janeiro. A obra termina em dezembro.
Antes de o parque abrir, o bairro começou a ensaiar alguma reação há cerca de três anos, com a inauguração de novos condomínios populares no entorno. Um deles fica na Rua Assis Carneiro, onde por décadas funcionou uma fábrica de açúcar. Essa ocupação incentivou Verônica Rocha a investir em uma loja de rações na esquina das ruas Manoel Vitorino e Assis Carneiro:
— Há três anos já se falava na construção do parque. Contei com isso ao investir e agora, claro, espero que as vendas aumentem —diz.
A loja de rações é vizinha de uma academia de crossfit.
— Viemos para cá porque o aluguel era barato. Com a abertura do parque, a intenção é ampliar. Vamos comprar aparelhos de ginástica e musculação, pois a demanda deve crescer com mais gente frequentando essa parte do bairro — aposta Gustavo Martins, um dos donos da Box Cross Atlas.
O projeto prometido para a área ainda não está completo. Para o fim de 2026, está prevista a inauguração de uma unidade do Sesc, subdividida em oito áreas. Em 17 mil metros quadrados, haverá escolas de ensino infantil, fundamental e médio, além de um centro esportivo que deverá receber partidas de vôlei do Flamengo, patrocinado pelo Sesc. O local foi planejado para receber até 1,5 mil alunos em práticas esportivas e 500 atletas.
— A gente vai reformar e manter a piscina olímpica que era da UGF. Pretendemos ainda abrir um teatro para 200 espectadores. Entre as modalidades esportivas teremos judô, em convênio com o Instituto Reação, de Flávio Canto— explica o presidente do Sesc e da Fecomércio, Antonio Florencio de Queiroz Júnior.
Em frente à futura entrada do Sesc há uma revenda de galões de água mineral. Nos áureos tempos, esse era o endereço de uma livraria que funcionou por 45 anos — até fechar junto com a UGF.
— No nosso caso, a gente acredita que o movimento vai aumentar quando o Sesc abrir— diz o proprietário Robson Luiz de Freitas.
Quando alugou o espaço, há três anos, Robson pagava R$ 800 por mês. Com a recuperação do entorno, o contrato foi renegociado: passou para R$ 1 mil.
O parque custou à prefeitura R$ 72,4 milhões, incluindo as despesas para implodir dois prédios e demolir um terceiro. O espaço, que ocupa 23 mil metros quadrados, terá duas piscinas, campos de futebol com grama sintética e de areia, palco para shows e academia. Uma passarela de pedestres foi construída para permitir o acesso de moradores que vivem do outro lado da via férrea. A expectativa é que de 15 a 20 mil pessoas frequentem o espaço por mês. A prefeitura criou até uma linha extra de ônibus, ligando o Parque Piedade ao Méier, que só vai operar nos fins de semana.
—A gente replicou aqui um modelo desenvolvido a partir da inauguração do Parque Madureira (em 2012). Além de oferecer lazer, áreas abertas como essa influenciam no microclima das regiões, ao reduzir as ilhas de calor dos bairros — explica o secretário de Infraestrutura, Wanderson Santos.
A manutenção do espaço caberá à secretaria de Conservação. Diego Vaz, à frente da pasta, avisa que o parque vai abrir ao público de terça a domingo, das 6h às 22h — e a área aquática funcionará das 9h às 17h. Na inauguração, vai ter show com Arlindinho, filho do grande sambista que batiza o parque, morto em agosto desse ano.
A viúva Babi Cruz explicou que apesar de Arlindo Cruz ser conhecido pela ligação com Madureira e a escola de samba Império Serrano, a história do marido se confunde com a de Piedade.
— Conheci Arlindo e trocamos o primeiro beijo no clube Oposição, que ficava próximo à Suburbana. Arlindo morou no Morro do 18. E, ao casarmos, fomos morar em uma casa vizinha ao parque. Arlindinho estudou na UGF — contou Babi.
A prefeitura também construiu o prédio onde funcionará uma espécie de memorial da Gama Filho, a ser administrado por ex-alunos, com acervo de 2 mil objetos . O espaço relembrará momentos como exibições do coral Gama Filho com a OSB, performances de atletas formados ali que disputaram as Olimpíadas, e fará referência a ex-estudantes como Xuxa e Sandra de Sá.
Antes da UGF, aberta em 1940, o bairro ficou mais conhecido pela crônica policial: em 1909, o jornalista Euclides da Cunha, autor do clássico “Os sertões”, morreu ao trocar tiros com Dilermando de Assis, amante de sua esposa.

