Advogado e político, mesmo debilitado, Luiz Henrique Ferreira — o Luiz Henrique Cidadão — tirou forças não sabe de onde, subiu numa cadeira e fez um comício, protestando contra a atitude de um comandante da antiga Varig, no Aeroporto Presidente Médici (atual, Plácido de Castro), de Rio Branco, no Acre. Ele tinha sido proibido de viajar para o Rio, depois de solicitar embarque preferencial por estar muito fraco e ter HIV/Aids. Após o discurso, o sargento Da Silva, se aproximou e sussurrou no seu ouvido: “O senhor foi discriminado”. Da Silva se apresentou como representante do Departamento de Aviação Civil (DAC) e continuou: “Quer formalizar uma queixa? Eu ajudo”.
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Luiz Henrique foi além do registro, que culminou com multa do Ministério da Aeronáutica à companhia aérea. Ingressou com ação na Justiça, conseguindo ser indenizado. O comandante havia exigido que ele apresentasse atestado médico. Sem ter alimentação e hospedagem custeadas pela empresa, teve que se virar. No dia seguinte, com o documento em mãos, embarcou.
O caso se passou no fim de julho de 1995. Poucos anos antes, comissários da mesma empresa, numa espécie de “contrabando do bem”, levavam receitas e traziam do exterior o AZT — na ocasião, o único medicamento usado para combater o vírus, que ainda não era aprovado no Brasil — , o que é retratado na série “Máscaras de oxigênio não cairão automaticamente”, que, para ser produzida, teve a consultoria por dois anos da infectologista Marcia Rachid, médica de Luiz Henrique. Baseada em fatos reais, a obra estreou em agosto na HBO Max.
Carioca de Piedade, que vive em Copacabana e hoje está com 70 anos, ele descobriu que tinha HIV em julho de 1991, num momento em que a epidemia do vírus se espalhava pelo Brasil e pelo mundo. A suspeita é de que tenha contraído HIV, por relações sexuais, em 1990 — quando já apresentava uma alteração na língua chamada leucoplasia pilosa. Naquele ano, o cantor e compositor Cazuza tinha perdido a luta contra a Aids.
De lá para cá, enfrentou a Aids, o medo, os preconceitos, os efeitos colaterais dos remédios, o chá alucinógeno do Santo Daime, a interrupção da medicação, a proibição de embarcar, e recebeu até duas extremas-unções no Hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, na Tijuca.
— Brinco com as pessoas. O presidente Lula diz que é uma metamorfose ambulante. Eu digo que sou um milagre ambulante — diz.
Vírus indetectável desde 2010
Desde 2010, exames revelam que o HIV está indetectável no seu sangue. Ou seja, não transmite mais o vírus, embora precise continuar tomando remédio, pois não há cura após a pessoa ser infectada. Quanto a co continuar vivo e ativo, ele atribui a dois fatores:
— A vontade de viver e a experiência com Deus. Eu santifiquei a minha vida. Por isso, é que eu estou em pé.
Um dos fundadores do PDT, ele era do grupo que Leonel Brizola apelidou de “os barbudinhos”, numa alusão ao filósofo comunista Karl Marx. Foi líder comunitário do Posto Seis (Copacabana). É servidor aposentado da Riotur e teve vários cargos de direção no estado, na prefeitura e na Alerj. O sobrenome Cidadão vem do tempo em que postulou ser deputado estadual, em 1990. Havia um outro candidato Luiz Henrique, e um amigo sugeriu que ele usasse o Cidadão.
— Estou mais vivo do que nunca, com ânimo e cheio de projetos — diz ele, que reuniu em pastas documentos e fotos, com a intenção de publicar um livro sobre sua história.
Mas as dificuldades e os desafios foram inúmeros, desde que, dois dias antes do seu aniversário de 36 anos tomou conhecimento do resultado positivo do exame de HIV:
— Andava perambulando pelas ruas, desesperado, sem saber o que iria fazer da vida. O meu mundo caiu. Imagina a minha cabeça, o estado em que fiquei?
Foi buscar ajuda no Pela Vidda. E iniciou o tratamento com Marcia Rachid, uma das fundadoras do grupo. No começo, ela prescrevia o AZT, que ele comprava ao lado do Aeroporto Santos Dumont. Frascos do medicamento eram trazidos em aviões da Varig.
Nessa época — quando ativistas promoviam protestos contra empresas que exigiam testes e demitiam pessoas que tinham o vírus —, o AZT foi aprovado pelas autoridades sanitárias brasileiras. Porém, a quantidade que o governo importava era mínima diante da necessidade. Quem podia, comprava.
— Alguns acabaram morrendo mesmo tomando AZT, mas alguns conseguiram viver e esperar outros remédios chegarem. No fim de 1991, começou a terapia dupla com AZT e DDI. Em 1992, tínhamos o DDC. Os remédios foram aparecendo, e quem estava vivo ia se beneficiando. Em 1996, já se tinha uma terapia mais eficaz. Em novembro de 1996, veio a lei que permite que todas as pessoas recebam gratuitamente os antirretrovirais mais potentes, chamados pelos leigos na época de coquetel, porque era uma quantidade maior de comprimidos. Hoje, não usamos mais esse termo. O tratamento é com poucos comprimidos, a associação de duas ou três drogas — explica Marcia Rachid.
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Mesmo depois de diagnosticado com HIV, quando não estava de licença médica, Luiz Henrique continuava trabalhando. Recentemente, tomou conhecimento de uma atitude que o deixou com lágrimas nos olhos. Numa conversa com Angela Maria Rocha, que foi secretária do ex-prefeito Marcello Alencar (1989/1992), soube que muitos saíam da sala dela, quando sabiam que ele tinha chegado na recepção.
— A moça da recepção me avisava. Tinham várias pessoas na minha na sala aguardando para falar com o prefeito. Eu perguntava: “Por que vocês estão indo embora?”. Eles respondiam: “O Henrique está chegando”. Eu falava que não tinha contaminação pelo ar, mas não adiantava. Aquilo me marcou, como um estigma, um preconceito feio. Eu sempre fazia questão de levantar e dar um abraço nele.
Em abril de 1995, emocionalmente abalado e sentindo muitos efeitos colaterais dos remédios — como diarreia constante — , Luiz Henrique ouviu o conselho de quem se apresentou a ele como “bruxa”. Largou a medicação e, em busca de cura, se embrenhou no Céu do Mapiá, uma vila comunitária do Santo Daime, na floresta amazônica, no Acre. Lá, passava grande parte do tempo tomando chá e usando maconha.
— Estava morrendo. Magro e alucinado — conta.
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Então, decidiu voltar. Guiado por um casal de caboclos, seguiu de barco pelos igarapés da floresta. Com a passagem comprada por sua família, chegou ao aeroporto, onde enfrentou a queda de braço com o comandante da Varig. Já no Rio, foi convencido a alugar uma casa em outro espaço do Santo Daime, em Saquarema, de onde saiu de ambulância para o hospital.
— Fiquei em coma e recebi pela primeira vez a extrema-unção. Em dezembro daquele ano (1995), cai e fui para o hospital de novo. Em maio de 1996, fui internado mais uma vez, quando recebi a segunda extrema-unção.
Ainda nos anos 1990, numa das quedas, no quintal do apartamento onde morava à época, em Copacabana, ele foi socorrido por um vizinho, que, da janela, o viu no chão.
— Eu tinha uns 20 e poucos anos. Chamei a minha mãe, que trabalhava com enfermagem. Conseguimos entrar, e o socorremos. Sabia que tinha HIV. Depois, começamos a frequentar a casa dele, e daí nasceu nossa amizade — conta Affonso Júnior, que trabalha comprando e vendendo objetos antigos, assim como Luiz Henrique faz hoje.
O seu histórico mostra que, em 1996, estava com 63 quilos e anêmico. Interrompia a medicação e fumava muito — um vício que superou mais tarde. A rebeldia era tanta que, um dia, sua médica o abraçou na porta do consultório.
— A Márcia me disse: “Tecnicamente, você já era para estar no buraco há muito tempo — recorde ele.
A rebeldia foi perdendo espaço a partir de 1999, quando passou a frequentar um grupo de oração da Assembleia de Deus, em Olaria. Em 2005, batizou-se e tornou-se membro da Primeira Igreja Batista de Copacabana. Hoje, além de frequentar os cultos, faz trabalho de evangelização pelo WhatsApp e promove reuniões de oração em sua casa.
— Ele tinha perdido toda a perspectiva de vida até que teve uma experiência pessoal com Jesus, que o levou à Igreja. A experiência dele foi tão transformadora, que transborda. Apesar das lutas, das dificuldades, está sempre firme, trabalhando, alegre, testemunhando — conta o pastor Vitor Manuel Valente.
Luiz Henrique se considera um sobrevivente. Afinal, além das sequelas dos antirretrovirais que toma, infartou em 2014, e, em 2021, encontraram um tumor no seu cérebro:
— Por enquanto, não preciso operar. E eu vou vencer essa. O tumor vai desaparecer, em nome de Jesus.
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E o preconceito? Luiz Henrique diz que não pensa nisso, que a sua preocupação é em viver e que não se sente sozinho, mesmo morando só. Marcia Rachid, contudo, afirma que o estigma persiste, desde que surgiram os primeiros casos de Aids no mundo, em 1981:
— Pessoas continuam perdendo emprego, tendo objetos separados dentro de casa. Por que o preconceito não acaba? Porque a gente não pode ficar presa ao passado. Precisamos atualizar até a linguagem. Na série (da HBO), não tem termo antigo. Não se fala, por exemplo, contaminado, portador, soropositivo. Para não aumentar o estigma, os personagens falam: “eu vivo com HIV”.

