Joana Darc Bazílio da Cruz, de 40 anos, e Marcelo Cristiano Soares Pessanha, de 49, conseguiram emprego, um teto e deixaram de viver nas ruas. Histórias de superação mostram que é possível se reintegrar, apesar de os especialistas apontarem o quão difícil é a reinserção social. E, quanto mais tempo em situação de rua, menores as chances de superar essa vulnerabilidade social. A maior parte, 36,4%, está nessa condição há até seis meses, mas 10% estão há mais de dez anos sem casa.
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Conflitos familiares empurraram Marcelo para as ruas do Rio e para as drogas e o álcool. Ele saiu de casa pela primeira vez aos 16 anos, para morar com a avó quando a mãe morreu de câncer. No período em que ela esteve doente, ele começou a ficar mais tempo fora de casa com os amigos:
— Você ver a sua mãe definhar numa cama não é fácil. Quando minha mãe faleceu, foi um estopim. Meus irmãos falavam que eu que matei, que eu era o bandido da família porque usava droga. Logo após ela morrer foi que comecei a usar droga. Antes disso, não.
A vida voltando aos trilhos
Como é que você deita, em sã consciência, num chão cheio de poeira, com barata, com rato passando, e dorme? Só alcoolizado. Não tem como. A cachaça se torna um parceiro do dia a dia. Não é o que você queira beber, você tem que beber.
— Marcelo Pessanha, garçom
Até perto dos 30 anos, ele foi mudando de endereço, às vezes ficando na casa dos irmãos, outras vezes conseguindo alugar alguma moradia. Trabalhou como pedreiro e garçom. Mas a dependência química o impedia de manter empregos e casamentos.
Teve quatro filhos nesse período. Após uma briga conjugal, começou a ficar na rua. Morou debaixo de um viaduto no Irajá, na Zona Norte do Rio, e frequentava um centro pop, que presta assistência a pessoas nessas condições, para tomar café e banho.
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—É uma coisa engraçada. Quando você vai para a rua, tenta manter sua higiene, tenta se manter um pouco mais civilizado. Depois de um período que você passa a comer em lata, comer resto de comida, você não esquenta nem mais para banho. É horrível. Uma coisa que engana e que você vê uma naturalidade nisso. Entendeu? Eu reciclava para beber e usar droga. Nem pensava em comida.
Foi numa instituição religiosa de apoio a pessoas com problemas de alcoolismo que Marcelo começou a vencer a dependência. Percebeu que estava longe dos filhos. Ele lembra de quando dormia em frente ao Hospital Souza Aguiar, no Centro:
—Como é que você deita, em sã consciência, num chão cheio de poeira, com barata, com rato passando, e dorme? Só alcoolizado. Não tem como. A cachaça se torna um parceiro do dia a dia. Não é o que você queira beber, você tem que beber.
Marcelo passou a frequentar um albergue da prefeitura, no Centro, que revisitou com O GLOBO. Ali, teve um lugar para morar por nove meses, prazo máximo para a moradia temporária. Conseguiu um emprego como garçom e alugou um apartamento. É acompanhado pela assistente social Jaqueline Medeiros nesse processo de reintegração.
—Quando eu entro em alguns lugares que frequentava quando estava na rua, as pessoas não me reconhecem. Somos invisíveis — ele diz.
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Joana viveu em situação de rua por dez anos, em Brasília. Perto dos 12 anos, quando perdeu a mãe, assassinada a facadas num bar, a convivência difícil com a irmã e a revolta pela morte da mãe a fizeram sair de casa pela primeira vez. O pai também já tinha falecido:
—Voltei para casa quando tinha 15 anos para depois ficar no acolhimento (nos centros para passar o pernoite).
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Foi nessa época que Joana engravidou do primeiro filho. A criança foi morar com o pai e ela engravidou novamente, mas foi separada do menino quando ele tinha 7 anos. Depois teve mais dois filhos.
— Fiquei capengando até que consegui pagar um aluguel e engravidei novamente. Foi quando fui incluída no Cadastro Único. Reformaram uma casa que meu pai deixou para nós. Com suporte da moradia, pude mudar — conta Joana, que teve oito filhos, mas não pôde criar quatro deles.
Ela conta que a abordagem social que era feita pelo governo a encontrou na rua e explicou os seus direitos. Foi acompanhada por profissionais do Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
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Hoje, Joana é agente facilitadora da Fundação Oswaldo Cruz e também coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). E está conseguindo criar as meninas Maria Clara, de 8 anos, Ana Cecília, de 6, Aylla Manuela, de 3, e o menino Theo Gabriel, de 1 ano.
— Não pude criar os meus primeiros filhos, agora estou podendo criar os mais novos —diz Joana. — Foi muito difícil, tive acompanhamento psicológico, crises de síndrome de pânico. Já não queria ficar ali (na rua), não era a única opção. A gravidez foi um impulso.