Arte como remédio para expurgar os próprios demônios. Assim surgiu a série “Fim do medo”, que Jamex espalhou em forma de pixo e lambe-lambe pelas ruas de Salvador. Nome mais jovem a ter obra incluída no acervo permanente do Museu de Arte Arte Moderna da capital baiana e uma das mentes mais interessantes que despontam na cena criativa atual da cidade, o rapaz de 23 anos ainda estava com 18 quando começou a entender o significado de seu corpo preto no mundo.

Intervenção urbana de Jamex: ‘Fim do medo’ — Foto: Cristina Nogueira

— Na minha comunidade, eu era visto como um alvo — diz ele, nascido no bairro de Nordeste de Amaralina, filho de costureira e vendedor. — Em regiões nobres, como Rio Vermelho e Pituba, eu era o motivo do medo das pessoas. Fui bem criado, não faria mal a ninguém, não sou um monstro. Por que tinham medo de mim? Não passava perto de um carro parado com alguém dentro para não assustar os outros — conta.

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Os questionamentos de Jamex mostram como a perversidade do racismo pode embaralhar as cartas na cabeça de alguém. Consciente de que esse caos não era dele, mas sem saber como agir diante do que sentia, Emanuel de Assis Nepomunceno Silva transformou o apelido Jamelão (por causa de um meme famoso) em Jamex e se tornou artista “para comunicar o que me incomoda no mundo e me comove, no mau e no bom sentido”. Só na transição para a vida adulta ele pôde compreender a superproteção da mãe, que preferia que o filho não passasse muito tempo na rua, e a rigidez do pai com seu visual:

— Ele dizia: “Deixa o cabelo baixo”. Me incomodava, porque sou livre para fazer o que quiser. Mas era como se tudo fosse culpa minha.

No Rio Vermelho, em Salvador — Foto: Cristina Nogueira
No Rio Vermelho, em Salvador — Foto: Cristina Nogueira

O grito entalado saiu como um manifesto artístico: praticamente um mantra que repetia a si mesmo para convocar a coragem, “Fim do medo” acabou representando muita gente e deu o que falar na na cidade.

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— Assim como todo mundo, fiquei intrigado com com a frase, que sintetizava muita coisa — conta o cineasta Ramon Coutinho, que rodou o filme “Jamex e o fim do medo”, que estreia dia 5 no XX Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador. — Jamex é cinematográfico em si. Não só os seus quadros, mas ele mesmo é uma figura imagética forte, ainda que tímido. Faz parte de um grupo de artistas daqui que performam a própria arte. O jeito dele parece uma extensão de sua produção.

A arte nasceu com Jamex, que não teve referências no entorno.

— Fui uma criança com mente fértil e tocada pelas coisas que aconteciam, como esponja que absorve tudo. Rabiscava revistas de moda da minha mãe. Mas não tinha acesso, não entendia o que era arte, não havia instrução sobre o que é ser artista, muito menos referência de artista negro.

— Assisti ao filme “Basquiat” (“Traços de Uma Vida”, 1996) e pensei: “Isso existe! Também posso viver da minha arte”. Consegui entender mais esse mundo, pesquisar linguagens. Comecei a publicar obras nas redes, e pessoas comentavam. Não tinha técnica, mas eu ia me expressando.

A cantora Roberta Flack, morta em fevereiro, inspirou obra de Jamex — Foto: Maria Fortuna
A cantora Roberta Flack, morta em fevereiro, inspirou obra de Jamex — Foto: Maria Fortuna

Depois dos muros, a expressão ocupou madeiras e papelões que catava na rua e serviam de suporte para a tinta guache barata que conseguia comprar. Aí, vieram a tela e a tinta acrílica, que usou na série “Fé pública”, fruto das várias abordagens policiais violentas que levou na vida.

Jamex criou obra inspirada no filme 'Ainda estou aqui' — Foto: Maria Fortuna
Jamex criou obra inspirada no filme ‘Ainda estou aqui’ — Foto: Maria Fortuna

— Como sempre, o policial me humilhou. Um servidor público negro me insultou porque eu estava na rua, conversando com um amigo sobre arte. Não podia fazer nada. Dá revolta, precisei pintar.

Mas há também muita referência positiva no trabalho de Jamex, como música e filme. Até o mês passado, um quadro com a frase “Depois de ter você”, título de canção de Adriana Calcanhotto, integrava a exposição “Raízes”, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira. A cantora Roberta Flack, morta em fevereiro, também inspirou obra, assim como o filme “Ainda estou aqui”.

Após mostra individual na Câmara dos Vereadores e expo no MAM, Jamex fechou contrato de representação com Vitor Valery, da Vandal Arte. Hoje, divide apartamento no bairro do Garcia com um amigo. Ele se recorda emocionado do que conseguiu realizar com o dinheiro da primeira obra que vendeu por R$ 2mil.

— Faltava gás em casa, e meus pais não podiam comprar. Comprei e dei orgulho a eles. Fui o primeiro da família a viajar para Rio e São Paulo. Isso mexeu comigo — afirma o artista que, aos poucos, vai aplacando o medo. — Sigo de cabeça erguida.

conheça o jovem artista que deu o que falar com intervenção urbana que mexeu com Salvador