As nuvens de chuva da manhã se dissiparam e o céu azul apareceu enquanto cerca de 75 membros da Sociedade F. Scott Fitzgerald aguardavam em um píer em Long Island, Nova York. Eles se reuniram em um domingo recente para o passeio de barco “O grande Gatsby”, um cruzeiro de 90 minutos pela Baía de Manhasset para explorar East Egg e West Egg, as penínsulas fictícias onde Fitzgerald ambientou seu célebre romance de 1925.

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Enquanto o capitão trabalhava para substituir uma bateria descarregada no barco, o grupo de estudiosos e fãs de Fitzgerald comia sanduíches e se misturava. Kirk Curnutt, professor de inglês na Universidade Troy, no Alabama, explicou que o cruzeiro foi o evento de abertura da conferência anual da sociedade, que, em comemoração ao centenário da publicação de “Gatsby”, seria realizada este ano na cidade de Nova York.

Os participantes vieram de todo o país e do mundo. Curnutt apontou para uma mulher alta e loira, professora de literatura americana na Universidade de Londres e autora de várias obras sobre Fitzgerald, incluindo um artigo recente para o Financial Times sobre como “Gatsby” previu o trumpismo. “Essa é Sarah Churchwell. Ela é uma das estrelas”, disse ele.

Curnett, de 60 anos, ensina “Gatsby” para alunos do ensino fundamental que, mais tarde, lecionarão o romance em escolas de ensino médio.

— Nós os ensinamos a ensinar — conta Curnett. — Por exemplo, a evitar a expressão “sonho americano”. É um clichê muito batido.

Leonardo DiCaprio na adaptação do romance, dirigida em 2013 por Baz Luhrmann — Foto: Divulgação

Foi somente na faculdade que Curnett leu “Gatsby”, em meados da década de 1980, durante um dos renascimentos culturais periódicos do livro.

— Lembro de muitas garotas hipsters que queriam ser Zelda — recorda, referindo-se à esposa e musa de Fitzgerald, além de uma artista por mérito próprio.

Não havia nenhuma sósia óbvia de Zelda, mas uma mulher no grupo estava vestida como Daisy Buchanan, personagem central do romance que é a obsessão de Jay Gatsby. Steff Keim, advogada do do Bronx, em Nova York, usava um vestido solto rosa-claro e um chapéu cloche, combinado com óculos de sol redondos e grandes.

— Me visto de forma bem vintage na maior parte do tempo. Uso dos anos 1920 aos 1940. Os anos 1950 são meu limite. Os papéis femininos mudaram naquela época e se tornaram mais domésticos — comenta Steff.

Capa de 'O grande Gatsby' — Foto: Divulgação
Capa de ‘O grande Gatsby’ — Foto: Divulgação

Entre os membros da sociedade que aguardavam para embarcar estava Matt Quinn. Grande e forte, ele é membro do Corpo de Bombeiros de Nova York. Criado no Queens, Quinn, de 44 anos, disse que era fascinado pelo deserto industrial ao qual Fitzgerald se refere no romance como o Vale das Cinzas, e que agora é a área ao redor do Citi Field. Mas, segundo ele, literatura não é um assunto de conversa no quartel. Então, ele pagou US$ 30 para se filiar à sociedade Fitzgerald.

— Nunca conheci ninguém que apreciasse “Gatsby” — conta Quinn. — Mas agora, estou no clã.

Depois de um tempo, o guia turístico, Kevin C. Fitzpatrick, pareceu dizer que o barco estava pronto e que o grupo embarcaria. “Meyer Wolfsheim acabou de nos entregar uma bateria nova”, disse Fitzpatrick, falando ao microfone e fazendo uma referência interna a um personagem do romance, amigo mafioso de Gatsby.

Fitzpatrick, de 59 anos, que vestia terno azul e gravata, é uma daquelas pessoas cuja alma pertence a outra era. Ele é autor de vários livros sobre a Era do Jazz e fundador da Sociedade Dorothy Parker. No ano passado, Fitzpatrick assumiu o passeio de barco Gatsby de um amigo que o havia iniciado em 2008. O passageiro mais famoso até agora foi o diretor Baz Luhrmann, que estava procurando possíveis locações para sua adaptação cinematográfica de 2013 de “Gatsby”, estrelada por Leonardo DiCaprio.

Sem dúvida, Luhrmann buscava, assim como os demais, o cenário real daquele que era indiscutivelmente o maior romance americano. Os Fitzgeralds viveram em uma casa de campo em Great Neck de 1922 a 1924: as casas espetaculares, as pessoas ricas e a atmosfera despreocupada da região naqueles anos efervescentes se refletem no romance.

O barco partiu de Port Washington — ao sul de Sands Point, ou “East Egg da moda”, como Fitzgerald descreveu o território da elite. Algumas das antigas mansões à beira-mar foram demolidas e substituídas por novas, mas muitas permanecem.

— O prédio branco a bombordo é a casa de Carl Fisher (empresário da indústria automobilística), que construiu Miami Beach — anunciou Fitzpatrick. — Ele chegou aqui em 1922, então ele e Fitzgerald estavam nesta água ao mesmo tempo.

Então o capitão se virou para West Egg — Great Neck — “a menos elegante das duas” penínsulas segundo Fitzgerald, onde Nick Carraway, o narrador do romance, vive em uma modesta casa alugada “espremida entre dois lugares enormes que eram alugados por doze ou quinze mil por temporada”, sendo um deles a mansão onde Gatsby realiza suas festas luxuosas.

Na época de Fitzgerald, Great Neck era o paraíso do show business, das estrelas do vaudeville e dos novos ricos.

— O cenário, as vistas, a topografia e a água não mudaram em cem anos — disse Fitzpatrick.

Aparentemente, o esforço social também não. O barco passou por uma mansão com cúpula de cobre que parecia ter sido tirada do Vale do Loire. Um teatro Tudor de 580 metros quadrados na propriedade, que pertenceu ao comediante Alan King, havia sido comprado por US$ 12,75 milhões e demolido. Seu substituto ostentava uma garagem subterrânea para 11 carros e alguns dos impostos prediais mais altos do estado de Nova York (mais de US$ 400 mil por ano).

Fitzpatrick observou que a casa havia sido construída pelo CEO da First Quality.

— Alguém sabe o que a First Quality fabrica? — perguntou ele ao grupo, para responder após uma pausa. — Fraldas para adultos. Esta é a casa que as fraldas para adultos construíram.

Cruzeiro reúne apaixonados pelo centenário ‘O grande Gatsby’ em passeio por locais onde a trama foi ambientada