No alto do Morro da Formiga, tambores e violas anunciam a chegada da Folia de Reis. Nas vielas estreitas, cores, cantos e figurinos contam histórias que atravessam gerações. Há mais de 40 anos, a Estrela Vermelha leva fé e música às casas da comunidade, preservando uma tradição que mistura devoção católica e cultura popular. A Folia de Reis reconta, com música e encenações, a visita dos Reis Magos ao menino Jesus. O cortejo mantém viva no morro essa herança, envolvendo moradores em um rito coletivo de fé, solidariedade e alegria.
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Entre os rostos mais jovens está Geovanna da Silva, de 21 anos, estudante que cresceu acompanhando o reizado em família e que hoje participa com entusiasmo.
— Aprendi que o reizado pode nos trazer cura, prosperidade e paz. Quero continuar passando essa tradição adiante, como meus antepassados fizeram — diz.
É nesse ambiente que a ONG Criar Brasil realiza o projeto Na Cadência Carioca — Mestres e Mestras dos Saberes, que percorre cinco comunidades da Grande Tijuca (Formiga, Salgueiro, Turano, Mangueira e Vila Isabel) registrando e valorizando manifestações da cultura popular de matriz afro-brasileira. A iniciativa combina documentação audiovisual com apresentações e oficinas, aproximando jovens e moradores das tradições locais.
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A programação de setembro prevê apresentações abertas ao público: na próxima sexta-feira, às 15h, a Folia de Reis na Creche Tia Bela, no Morro da Formiga; no sábado, às 17h, o caxambu na Areninha Cultural João Bosco, em Vista Alegre; e no domingo, das 15h às 22h, o bloco Cometas do Bispo na quadra do bloco, na Rua Joaquim Pizarro 2, no Rio Comprido.
Desde o início do ano, a equipe do Criar Brasil percorre as comunidades para captar depoimentos de mestres e mestras, guardiões de tradições que moldam a identidade carioca. O objetivo é transformar esse material em cinco curtas-metragens e podcasts inéditos, com previsão de lançamento ainda este ano.
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No Morro da Formiga, a Folia de Reis A Brilhante Estrela de Belém também mantém viva a fé e a música. Além de Geovanna, que atua como assistente de produção do projeto, o grupo conta com Claudio de Jesus — o Mestre Xaxo —, morador da comunidade responsável por repassar ensinamentos e histórias às novas gerações.
— Apesar de poucos recursos e problemas com instrumentos e transporte, conseguimos envolver os jovens e manter o entusiasmo — diz.
Rosangela Fernandes, diretora de arte do projeto, destaca a importância de dar visibilidade à cultura transmitida de geração em geração:
— Essas tradições são ressignificadas e resistem pelo empenho dos moradores, muitas vezes passadas oralmente, com poucos registros e pouco apoio. Nosso papel é dar visibilidade e fortalecer a conexão entre gerações.
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No Morro do Salgueiro, o caxambu, também chamado de jongo, mantém viva a tradição afro-brasileira. A prática combina música, dança e canto, reunindo moradores em rodas que celebram a ancestralidade. A tradição remonta ao início do povoamento da comunidade, quando ex-trabalhadores rurais e ex-escravizados levaram seus ritos para o morro, tornando-os parte central da história e da identidade local.
A memória do jongo também se preserva nas lembranças dos mais velhos. Tia Celina, de 78 anos, recorda os primeiros contatos com a dança ao observar sua avó:
— Ela participava, e eu queria ir também. Fiquei espiando e aprendi a dançar caxambu vendo minha avó.
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Para Tia Mara, de 70 anos, participar da roda significa resgatar e compartilhar memórias familiares:
— Aprendi com meu pai e meu avô. Hoje estamos aqui para resgatar e compartilhar essa memória.
No Morro do Turano, o bloco Cometas do Bispo é referência do carnaval de rua. Fundado em 1962, o grupo desfila com fantasias e samba no pé, consolidando-se como símbolo da comunidade. Seus cortejos na Estrada Intendente Magalhães reúnem diferentes gerações e mantêm ativa uma das expressões populares mais tradicionais do Rio.
O trabalho do bloco vai além dos dias de folia. Durante o ano, promove rodas de samba, encontros e atividades culturais para fortalecer o vínculo comunitário e assegurar a continuidade das tradições carnavalescas.
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Para Thiago Soares, da diretoria do bloco, o Cometas do Bispo também é ferramenta de mobilização cultural.
— O bloco passou por muitos momentos históricos. Nosso objetivo é continuar e não deixar essa chama se apagar. O que vemos hoje é fruto do trabalho realizado há 15, 20 anos — afirma.
Mangueira e Vila Isabel completam o mapa da tradição carnavalesca na Zona Norte. Ambas preservam práticas históricas e reforçam a identidade cultural de suas comunidades. A Mangueira, sede da Estação Primeira fundada em 1928, é referência no carnaval carioca. No desfile, a porta-bandeira conduz o pavilhão verde e rosa com técnica e precisão.
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Thalita Oliveira, primeira porta-bandeira mirim da escola, comenta o significado da dança:
— Segurar a bandeira e sambar é algo lindo. Inspiro outras meninas e me sinto conectada aos amigos e à comunidade.
Na Vila Isabel, o samba está presente na vida do bairro. Fundada em 1946, a Unidos de Vila Isabel atua como espaço de formação, produção artística e preservação cultural. Seus desfiles refletem a história local e o papel da comunidade na manutenção da escola. Evandro Luiz do Nascimento, o Bocão, compositor da Vila, reforça a importância da comunidade:
— Ela sustenta o samba. Quem leva a Vila Isabel é a comunidade. Quando faço um samba para a Vila, coloco tudo de mim, coração, sentimento, comunidade.
Para Rosangela Fernandes, diretora de arte do Na Cadência Carioca, o trabalho vai além da produção audiovisual.
— Estamos descobrindo a riqueza de cada visita, cada gravação. É uma dedicação quase devocional, muitas vezes sem retorno financeiro. Mas a paixão e o compromisso dessas pessoas com a cultura são imensos — diz.
Ela destaca que a Grande Tijuca reflete os contrastes do Rio: do asfalto às favelas, da violência à intensa produção cultural.
— Muitas dessas iniciativas são invisibilizadas. A força da Folia de Reis na Formiga é imensa. São quatro grupos atuando na comunidade, mas pouco enxergados fora dali. O caxambu do Salgueiro reúne senhoras de mais de 80 anos e novas gerações. O bloco Cometas do Bispo, no Turano, forma ritmistas e resiste ao tempo e às dificuldades — exemplifica.
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Segundo Rosangela, essas expressões cumprem um papel estratégico ao conquistar corações e mentes dos jovens, que se sentem valorizados, pertencentes e orgulhosos de sua história. O projeto busca dar visibilidade a essa realidade e estimular seu fortalecimento.
Estão em produção cinco curtas e cinco podcasts. O objetivo é disponibilizar as obras gratuitamente em plataformas digitais como YouTube e Bombozila e exibir os conteúdos nas próprias comunidades, em sessões de cinema e apresentações públicas, além de inscrevê-los em festivais, escolas e universidades.
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— Cada comunidade tem um mestre e um jovem comprometidos com a iniciativa, acompanhados por coordenadores pedagógicos e pela equipe de produção audiovisual. O trabalho integrado tem emocionado os participantes pela riqueza revelada em cada visita e gravação — diz Rosangela.
O projeto culminará em novembro, Mês da Consciência Negra, no Centro Coreográfico da Cidade do Rio, na Tijuca, reunindo representantes das manifestações culturais registradas.