A preocupação com o bem-estar social é um ponto fundamental para a uma democracia saudável, sobretudo em um continente marcado por desigualdades históricas e instabilidades políticas, como a América Latina. É o que defende a ministra de Desenvolvimento Social do Chile, Javiera Toro, que esteve em Brasília no início do mês para a VI Conferência Regional sobre Desenvolvimento Social da América Latina e do Caribe, que prepara a agenda para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, que ocorre em novembro, em Doha.
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Em entrevista ao GLOBO, a ministra destacou como a desigualdade pode minar a confiança pública nas instituições, e como avanços recentes na luta contra a pobreza, a fome e a desigualdade ainda convivem com riscos de retrocesso se não se transformarem em políticas reais.
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a América Latina é o continente mais desigual do mundo, onde os 10% mais ricos detêm uma participação maior da riqueza total em comparação com outras regiões.
Quais são os principais desafios sociais que o Chile enfrenta hoje e que lições a experiência do país pode oferecer ao Brasil, à região latino-americana e à Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social?
Houve avanços com a construção e a consolidação de sistemas de proteção social e a redução da pobreza. Mas, ao mesmo tempo, vemos que persistem desafios como a alta desigualdade. Isso continua sendo um problema no Chile e na América Latina, que é a região mais desigual do mundo.
É o momento para fazer um balanço e apontar os novos desafios. Sob o governo do presidente Gabriel Boric, o país tem avançado nessa dimensão. Um dos temas centrais, que acreditamos que pode contribuir ao debate global, são os sistemas nacionais de cuidado. A distribuição desigual desses sistemas é uma fonte de desigualdade social e de gênero, e é o que estamos enfrentando com novas estratégias.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) recomendou em Brasília um pacto global para a proteção social. Como garantir que a América Latina levará essa agenda com unidade para a cúpula?
Os países têm diferentes visões e experiências, mas há algumas questões sobre as quais conseguimos chegar a um acordo. Conseguimos obter consenso sobre documentos que vamos propor por um pacto pelo desenvolvimento social inclusivo. Isso implica que precisamos continuar avançando nos desafios de erradicar a fome e a pobreza, reduzir as desigualdades e incorporar a perspectiva dos cuidados no centro da proteção social. O que vimos nesses debates é que essas posições foram se consolidando.
A senhora afirmou durante a conferência regional que “sem proteção social não há cidadania plena e nem democracia que se sustente”. Como concretizar essa visão em um continente marcado por desigualdades históricas?
Desigualdades são também fonte da perda de confiança da cidadania nas instituições. Se nos últimos 30 anos houve avanços no Chile em distintos tipos de programas de apoio às populações mais vulneráveis, ainda é insuficiente diante do desafio de assegurar uma verdadeira inclusão.
O debate sobre proteção social não pode ser dado de forma isolada, tem a ver também com o próprio fundamento da democracia. Na reunião que tivemos com o presidente Lula, falamos dos desafios que persistem na região e de como é tão relevante que a luta contra a pobreza, contra a fome e contra a desigualdade não perca vigência. E assim como houve avanços, também houve retrocessos.
Hoje, o governo Lula está avançando de forma muito decidida nessa luta, mas sabemos que o que havia sido conquistado pode retroceder se esses avanços não se tornarem políticas de Estado.
A próxima COP, em Belém, deve reforçar a relação entre justiça climática e combate às desigualdades. Como integrar as duas agendas?
Quando falamos sobre crise climática, há efeitos muito importantes na população, especialmente na mais vulnerável. Enfrentamos, nos últimos três ou quatro anos no Chile, ao menos três grandes catástrofes com inundações, incêndios florestais e incêndios urbano-florestais que afetaram de forma significativa as condições de vida das populações.
É um desafio que se executa em nível global. É preciso ter sistemas de proteção social suficientemente flexíveis para chegar com a ajuda a tempo quando se enfrenta um choque como uma catástrofe. Também é necessário enfrentar com medidas mais contundentes a crise planetária para não continuar aprofundando essas desigualdades.
Assim como em outros países, o Chile também enfrenta o envelhecimento populacional e a queda da natalidade. Quais soluções o Chile discute para enfrentar esse novo cenário demográfico?
O Chile é o país da região com o processo de envelhecimento populacional mais acelerado, e a taxa de queda da natalidade também tem sido muito rápida. Isso traz complexidades nos desafios que enfrentamos. Também há uma maior sobrecarga de cuidados, que geralmente recai sobre as mulheres. Por isso é preciso reconhecer a importância e defender os avanços que representam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (…) Muitas sentem que a carga dos cuidados vai significar um sacrifício, uma perda em suas carreiras profissionais.
Políticas como o Sistema Nacional de Apoio e Cuidado são fundamentais, assim como um projeto de lei de creches para o Chile, que está em tramitação no Congresso, além do apoio e regulação dos serviços sociais de cuidado infantil. Mas também o aumento do salário mínimo, a redução da jornada de trabalho, a lei de conciliação da vida pessoal, laboral e familiar, que são avanços do governo do presidente Boric, acreditamos que apontam nessa direção.