A decisão da Universidade Harvard de se recusar a ceder a interferências do governo de Donald Trump sobre seus processos de contratação, admissões de alunos e currículo — que motivou o corte de US$ 2,2 bilhões (R$ 12,8 bilhões no câmbio atual) em verbas federais — colocou a mais antiga e mais rica instituição de ensino superior dos EUA na vanguarda da guerra lançada pelo presidente americano contra a ideologia “woke” nas universidades do país. Analistas apontam que a decisão de Harvard fortalece a posição de escritórios de advocacia, tribunais, mídia e outros alvos da Casa Branca a também resistirem ao ímpeto da cruzada ideológica de Trump, incluindo outras universidades que temem a ira do presidente.

  • Entenda: Casa Branca congela US$ 2,2 bilhões em financiamento para Harvard após universidade desafiar Trump
  • Leia também: Cerco às universidades de Trump incentiva fuga de cérebros e cria novo fenômeno nos EUA

— Isso é de uma importância monumental, monumental — disse J. Michael Luttig, um proeminente ex-juiz de apelações federais, reverenciado por muitos conservadores. — Isso deveria ser o ponto de virada na ofensiva do presidente contra as instituições americanas.

Com um fundo patrimonial maior que o PIB de quase 100 países, 140 anos mais antiga que os EUA e tendo formado oito presidentes americanos, Harvard é o alvo mais proeminente da campanha do governo para eliminar a ideologia “woke” dos campi universitários americanos. As exigências do governo incluem o compartilhamento de dados de contratação com o governo e a criação de uma entidade externa para garantir que cada departamento acadêmico tenha “diversidade de pontos de vista”.

Horas após a recusa de Harvard em aceitar os termos, na segunda, autoridades federais anunciaram que congelariam os US$ 2,2 bilhões (R$ 12,8 bilhões no câmbio atual) em subsídios plurianuais para a universidade, além de um contrato de US$ 60 milhões (R$ 350,5 milhões) — um baque financeiro que apenas uma instituição da envergadura da universidade poderiam suportar.

Os cortes já anunciados representam apenas uma fração dos US$ 9 bilhões (R$ 52,5 bilhões) em financiamento federal que Harvard recebe, sendo US$ 7 bilhões (R$ 40,8 bilhões) destinados aos 11 hospitais afiliados à universidade em Boston e Cambridge, Massachusetts — incluindo o Massachusetts General, o Hospital Infantil de Boston e o Instituto do Câncer Dana-Farber. Os US$ 2 bilhões (R$ 11,68 bilhões) restantes vão para bolsas de pesquisa diretamente para Harvard, incluindo áreas como exploração espacial, diabetes, câncer, Alzheimer e tuberculose. Ainda não está claro quais programas seriam afetados pelo congelamento.

A Universidade Columbia, pressionada pela perda de US$ 400 milhões (R$ 2,3 bilhões) em financiamento federal, concordou com importantes concessões exigidas pelo governo no mês passado, incluindo a criação de uma nova supervisão sobre seu Departamento de Estudos do Oriente Médio, Sul da Ásia e África. Outras universidades da Ivy League, instituições de elite no nordeste dos EUA, como Cornell e Northwestern relataram que descobriram sobre suspensões de repasse de recursos pela imprensa. Em Princeton, o reitor Christopher Eisgruber disse que também houve um corte milionário de verbas, sem que o governo comunicasse quais medidas esperava que a instituição tomasse.

Manifestantes pró-Palestina durante protesto no campus de Morningside Heights da Universidade Columbia — Foto: Bing Guan/The New York Times

“A Universidade não abrirá mão de sua independência ou de seus direitos constitucionais. Nem Harvard nem qualquer outra universidade privada pode permitir ser tomada pelo governo federal”, escreveu o reitor de Harvard, Alan Garber, em uma carta endereçada ao governo na segunda-feira.

Michael Roth, presidente da Universidade Wesleyana e um raro crítico da Casa Branca entre os administradores universitários, elogiou a decisão de Harvard.

— O que acontece quando instituições extrapolam seus limites é que elas mudam de rumo ao encontrarem resistência — disse ele. — É como quando um valentão é parado no meio do caminho.

A disputa do governo com Harvard, que tinha um fundo patrimonial de US$ 53,2 bilhões (R$ 310,7 bilhões) em 2024, é uma que o presidente Trump e Stephen Miller, um poderoso assessor da Casa Branca, querem travar. No esforço para romper o que consideram o domínio do liberalismo no ensino superior, Harvard é um troféu valioso. Uma batalha judicial de alto perfil daria à Casa Branca uma plataforma para continuar argumentando que a esquerda se tornou sinônimo de antissemitismo, elitismo e repressão à liberdade de expressão.

  • Contexto: Trump eleva pressão financeira sobre universidades e ameaça liberdade acadêmica

Steven Pinker, psicólogo proeminente de Harvard e presidente do Conselho pela Liberdade Acadêmica na universidade, disse na segunda-feira que era “verdadeiramente orwelliano” e contraditório que o governo impusesse diversidade de pontos de vista à universidade. Ele disse que isso também levaria a absurdos.

— O governo vai obrigar o departamento de economia a contratar marxistas ou o departamento de psicologia a contratar junguianos ou, ainda, a faculdade de medicina a contratar homeopatas ou curandeiros indígenas? — questionou ele.

Harvard não escapou das manifestações que abalaram campi universitários em todo o país após os ataques liderados pelo Hamas em Israel em 7 de outubro de 2023. Em sua carta, Garber disse que a universidade tomou medidas para combater o antissemitismo, apoiar a diversidade de opiniões e proteger a liberdade de expressão e o direito à dissidência. Esses mesmos pontos foram destacados em uma carta enviada ao governo por dois advogados que representam Harvard, William Burck e Robert Hur.

Burck também atua como consultor externo de ética da Organização Trump e representou o escritório de advocacia Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison LLP no acordo recentemente firmado com a administração Trump. Hur, que trabalhou no Departamento de Justiça no primeiro mandato de Trump, foi o conselheiro especial que investigou o manuseio de documentos confidenciais pelo presidente Joe Biden e o descreveu como “um homem idoso com memória fraca”, o que enfureceu Biden. Ambos os advogados compreendem bem o funcionamento jurídico da atual administração, um conhecimento útil para Harvard.

  • Análise: A guerra de Trump às universidades

“Harvard continua aberta ao diálogo sobre o que a universidade tem feito e planeja fazer para melhorar a experiência de cada membro de sua comunidade”, escreveram Burck e Hur na carta, endereçada aos conselheiros jurídicos interinos dos Departamentos de Educação e Saúde e Serviços Humanos, e a um comissário da Administração de Serviços Gerais. “Mas Harvard não está disposta a aceitar exigências que extrapolem a autoridade legal desta ou de qualquer outra administração”.

A deputada Elise Stefanik, republicana de Nova York, que realizou audiências no ano passado para investigar o antissemitismo em campi universitários, incluindo Harvard, foi dura em uma postagem nas redes sociais.

“A Universidade Harvard conquistou merecidamente seu lugar como o símbolo da decadência moral e acadêmica do ensino superior”, escreveu Stefanik, ex-aluna da instituição. Ela acrescentou que “é hora de cortar totalmente o financiamento dos contribuintes americanos a essa instituição que fracassou em cumprir seu lema fundador, ‘Veritas’. Cortem o financiamento de Harvard”.

Não está claro que outras medidas a administração Trump poderia tomar contra a universidade por sua resistência, embora ações potenciais incluam uma investigação sobre seu status de organização sem fins lucrativos e o cancelamento adicional de vistos de estudantes internacionais.

O presidente do Conselho Americano de Educação, Ted Mitchell, disse que a atitude de Harvard foi essencial.

— Se Harvard não tivesse tomado essa posição teria sido quase impossível para outras instituições fazerem o mesmo — disse Mitchell. (NYT)

Disputa com Trump coloca Harvard no centro de guerra ‘anti-woke’ lançada pela Casa Branca