A Defensoria Pública da União (DPU) denunciou, nesta segunda-feira (29), a ilegalidade do projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) que prevê gratificação a policiais civis por “neutralização de criminosos” em operações policiais. No ofício enviado ao governador Cláudio Castro (PL), a instituição afirma que a medida estimula confrontos letais, viola a Constituição Federal, decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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Segundo o documento obtido pelo GLOBO e assinado pelo defensor regional de direitos humanos Thales Arcoverde Treiger, o termo “neutralização” é impreciso e por si só fere a dignidade da pessoa humana:
— Pessoas não são ‘neutralizadas’, mas sim são mortas ou feridas, havendo exclusão, ou não, da ilicitude em razão da necessidade de preservação da vida ou da segurança de inocentes.
A DPU lembra que iniciativa semelhante vigorou entre 1995 e 1998, quando os homicídios decorrentes de intervenção policial cresceram significativamente no estado. À época, a bonificação ficou conhecida como “gratificação faroeste”.
“Além da notória violação da iniciativa exclusiva de leis desta natureza, que devem ter início não no Parlamento, mas no próprio Executivo, o dispositivo legal viola as boas práticas para o enfrentamento à criminalidade, gera tendência ao aumento de mortes por intervenção policial e cria sérios embaraços administrativos para a sua implementação“, diz trechos do ofício.
Fontes ligadas ao Palácio Guanabara afirmam que Castro discute reservadamente com aliados a possibilidade de vetar a proposta, aprovada no dia 23 como emenda ao projeto de reestruturação do quadro permanente da Polícia Civil. O texto prevê gratificação de 10% a 150% sobre o salário em caso de apreensão de armas de grande calibre ou “neutralização” de criminosos — termo entendido, na prática, como morte.
Segundo interlocutores, pesa na decisão o risco de desgaste político e de questionamentos judiciais. A análise ocorre em meio à posse do ministro Edson Fachin na presidência do STF, que em 2020 foi responsável por decisão que restringiu operações policiais durante a pandemia, na ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”.
A movimentação da DPU soma-se à de outros órgãos. Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) já havia notificado o governador sobre inconstitucionalidades do texto. O procurador da República Júlio José Araújo Júnior, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC/RJ), apontou três pontos principais: vício de iniciativa, descumprimento da decisão do STF na ADPF 635 e violação do direito fundamental à segurança pública.
— Na contramão dessa perspectiva, a evocação da letalidade policial como fator de promoção da segurança pública carece de qualquer comprovação, além de gerar efeitos contrários ao prometido — destacou o ofício.
Interlocutores do governo lembram ainda que o Rio está submetido ao Regime de Recuperação Fiscal, que impede a criação de novas despesas, e que já existe premiação por apreensão de armas em vigor. Também citam o Sistema Integrado de Metas, que orienta a política de segurança priorizando a redução da violência, em vez de estímulos à letalidade.
Apesar da pressão, aliados próximos pedem cautela antes de apostar no veto. Eles lembram que Castro já adotou posições consideradas imprevisíveis em episódios recentes, como a exoneração do ex-secretário Washington Reis, anunciada pela Alerj e depois confirmada pelo próprio governador.
Parlamentares que apoiaram a gratificação argumentam que a medida não tem como objetivo incentivar mortes, mas sim “reconhecer policiais que, no exercício da função, arriscam a própria vida no combate ao crime”.
O GLOBO mais uma vez procurou oficialmente o governo do estado para comentar a possibilidade de veto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.