E lá se vão 23 anos desde que o cineasta Eduardo Coutinho (1933- 2014) alçou o Edifício Master à fama, no documentário homônimo lançado em 2002. Mais de duas décadas depois, o prédio de 12 andares e 276 apartamentos conjugados, de 38 metros quadrados, na Rua Domingos Ferreira 125, em Copacabana, pouco lembra aquele retratado no filme vencedor do Kikito de Ouro de Melhor Documentário em Gramado.
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Na entrada, embora o portão azul ainda permaneça na lembrança coletiva, as mudanças são perceptíveis: a portaria 24 horas, antes pintada de verde, ganhou tons claros e sóbrios. Os jardins foram harmonizados por uma paisagista profissional. Os canteiros na frente do edifício foram arrumados de acordo com o protocolo da prefeitura. Na entrada, diante do balcão dos porteiros, telões imensos chamam a atenção: eles trazem imagens das câmeras que “habitam” a área toda do condomínio. Elas foram instaladas, inclusive, em pontos cegos, nas escadas e nos corredores que abrigam 23 apartamentos por andar. São 14 funcionários e uma empresa de segurança contratados para manter o ambiente protegido de roubos e furtos.
Dos 38 personagens selecionados pelo diretor na época, restam apenas quatro morando lá: a dançarina Suze, as irmãs pernambucanas Laudicéia e Luzinete e a poetisa Eugênia. Porteiro-chefe, Paulo Romão, de 54 anos, trabalha no prédio há 24. Ele diz que são dois edifícios diferentes.
— A pintura, os corredores, a quantidade de câmeras, a segurança, os aluguéis por temporada. Tudo mudou. Eu gosto bastante de trabalhar aqui — afirma.
As principais mudanças estruturais começaram a acontecer a partir de outubro de 2021, depois da morte do então síndico Sérgio de Carvalho Casaes, em setembro do mesmo ano. Ele estava desde 1997 à frente da gestão e ficou famoso, no filme, pela frase “Eu uso muito Piaget, quando não dá certo eu parto para Pinochet”, citando o psicólogo suíço Jean Piaget e o ditador chileno Augusto Pinochet em sua forma de lidar com os problemas.
Foram três anos de ajustes até que, em 2024, as já sindicas Neiva Ferrari e Tatiana Ferreira adicionaram Guilherme Brasão à equipe. Desde então — e pelo menos até 2026 —, o trio é o responsável por gerir os apartamentos e os cerca de 500 moradores que circulam pelo local, incluindo eles próprios.
— Aqui não tem monotonia — resume Brasão
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Os três costumam se encontrar diariamente na sala da administração, que fica logo no térreo. Embora o lugar esteja sempre de portas abertas, o trio conta que o pulso continua firme.
— Quando assumimos não tínhamos noção de tudo o que prédio ainda demandava. Estava deteriorado, e nós não tínhamos dinheiro para qualquer obra. Foram seis meses trabalhando de domingo a domingo para entender o que o Sérgio tinha deixado e o que ainda precisava ser feito. Eu chorei durante uma semana querendo desistir — diz Tatiana, moradora desde 2018.
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No prédio desde a década de 1990, Neiva explica que muitos dos acontecimentos citados no filme — como a prostituição — ficaram para trás há muito tempo e, inclusive, já eram situações pouco comuns mesmo na ocasião das filmagens. De um tempo para cá, ela conta, o grande desafio dos síndicos tem sido lidar com os proprietários de Airbnb, serviço on-line que oferece aluguéis de curta duração. Hoje em dia, relata, um terço dos apartamentos é destinado a este fim.
— Esse serviço nos trouxe bastante problema. O que fazemos é trazer os proprietários para perto, explicar as regras. Fizemos um regulamento interno que ainda não está totalmente pronto, mas vem sendo entendido e cumprido. Muita gente chegava aqui achando que estava em um hotel, perguntando sobre o restaurante, pedindo toalha— relembra ela.
Para evitar maiores problemas, a administração estipulou uma série de multas aplicadas quando há maus-tratos a funcionários ou falta de respeito aos limites de horário, por exemplo. As punições são revertidas em orçamento para melhorias na estrutura, que vêm sendo feitas aos poucos.
— Querer mudar tudo a gente quer, mas tem que ser com equilíbrio, de forma gradual. Então a gente joga com recursos para reverter em prol do condomínio, mas sempre estabelecendo prioridades, de acordo com o financeiro — pondera Brasão.
Para Tatiana, o maior desafio é lidar com as reclamações dos moradores.
— A gente não vai agradar a todo mundo. É pedrada atrás de pedrada. As pessoas não têm ideia das despesas de um prédio deste porte. Uma caçamba de lixo, por exemplo, custa R$ 700! São 26 delas aqui! É só fazer as contas! — impressiona-se ela, que é bastante popular entre os vizinhos. — Gosto do furdunço.
Entre eles está Daniel Braga. De Brasília, o rapaz está no Master há três anos. Morador do 811, fala que conhecia o prédio pelo filme e se surpreendeu com o que encontrou.
— Já morei na Barra, e lá o conceito de comunidade é bem diferente. Copacabana te abraça e te acolhe, e eu me sinto muito seguro no nosso prédio, porque ele também é meu, né? Fora que temos a árvore de Natal mais bonita de Copa — elogia Braga, que tem 45 anos, é consultor de empresas e mora sozinho.
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Embora Copacabana seja um dos bairros do Rio com a maior concentração de idosos, perfis como o de Braga estão sendo cada vez mais comuns no prédio, apontam os síndicos.
— Não temos mais tantos idosos, mas sim casais que optam por espaços menores, divorciados e muitos solteiros entre os 30 e 40 anos — afirma a síndica.
A localização do edifício, sem dúvida, é um chamariz para quem está no Rio. A uma quadra da Avenida Atlântica, entre as ruas Santa Clara e Constante Ramos, ele fica a poucos passos do Sesc Copacabana e de muitos barzinhos, cafés e restaurantes. Além do comércio abundante, há escolas, clínicas, a UPA Copacabana e outros serviços médicos pela região.
E se no filme os moradores eram classificados, em sua maioria, como classe média baixa, essa realidade também está modificada. Em uma das cenas, o personagem João, rapaz que integra uma banda de rock, conta que pagava R$ 350 de aluguel e R$ 135 de condomínio. Em 2002, o salário mínimo no Brasil somava R$ 200.
Quem mora no Master, hoje, paga R$ 674,30 de condomínio. Em uma busca na internet, o valor do aluguel a longo prazo pode chegar a R$ 3 mil, e o de venda de um apartamento, a R$ 500 mil. Reflexos da economia e dos avanços urbanos, como o metrô.
—Na época da Copa do Mundo, em 2012, teve apartamento à venda por R$ 700 mil. E não é por causa da fama do prédio e nem só no nosso prédio. É pela valorização do bairro. Aqui tem de tudo — empolga- se Brasão.
Deu na seção Rio, do jornal O GLOBO, de 22 de dezembro de 2002: “O metrô chega ao coração de Copacabana”. A inauguração da estação Siqueira Campos coincide com o ano de lançamento de “Edifício Master”. Na época, comerciantes esperavam um aumento de até 20% nos negócios e na valorização dos imóveis devido à movimentação prevista de cerca de 80 mil pessoas por dia. Ela veio quatro anos após a inauguração da Cardeal Arcoverde. A estação Cantagalo começou a operar em 2007.
— Sem dúvida, a chegada do metrô mudou tudo. Era o bairro da boemia nos anos 1970, 80, tornou-se área de idosos e hoje todo mundo circula por ali, sendo o palco de grandes eventos como shows e o réveillon — recapitula Tiago Bandeira, jornalista e pesquisador da página Tá na História.
Em 21 de março de 2005, uma segunda-feira útil, Lenny Kravitz fez o primeiro grande show fora do período de ano novo. Em fevereiro de 2006, vieram os Rolling Stones.
— Creio que isso foi um teste só possível por conta do metrô — avalia ele, lembrando que o sistema BRS (Bus Rapid System), implementado nas principais vias do bairro, em 2011, também ajudou no fluxo do trânsito.
‘Apartamento 608’ mostra agruras nas filmagens
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“Quando pergunta sobre o que é o filme, é um filme sobre um prédio que resume o espírito de Copacabana, do Rio de Janeiro e do Brasil, o filme é isso”, descreve o diretor Eduardo Coutinho no documentário “Apartamento 608”. Em 55 minutos, o filme, de 2009, traz registros da produtora Beth Formaggini sobre todo o processo de feitura de “Edifício Master”.
Integrante de uma das três equipes, Beth filmou o diretor, seus pensamentos e suas instruções à equipe durante o tempo em que ficaram hospedados no conjugado que dá nome ao documentário. Foi um mês de estadia para mapear os moradores e pesquisar sobre suas vidas e seis dias de filmagens pelos corredores. Os bastidores mostram a relação da equipe com os moradores do prédio, as abordagens e os laços criados. Em alguns momentos, o diretor ri, em outros se mostra preocupado com o conteúdo e com os planos de enquadramento. O filme também capta as conversas de Coutinho com os personagens e as impressões dele sobre os depoimentos coletados.
“Toda entrevista tem que ser em apartamento. Nenhuma em lugar público, tá?”, diz ele com seu indefectível cigarro.
Na tela estão o dia a dia e a rotina de 37 famílias habitantes do condomínio, suas dores e suas delícias e suas impressões sobre a vida em Copacabana. “Tem que ter sempre uma pergunta que não sugere que você está prejulgando. A delicadeza da questão é essa”, fala Coutinho à equipe durante cena do documentário. Na tela, personagens como Esther, senhora que sofreu um assalto e pensou em se jogar da janela, mas desistiu para não deixar dívidas; Alessandra, mineira de 20 anos, mãe aos 14 anos, e sem vergonha de falar de seu emprego como garota de programa no bairro; Roberto, camelô que teve um derrame, ficou seis meses no hospital e precisou parar de trabalhar; Daniela, moça com dificuldades no trato social que faz a entrevista sem olhar para o diretor; Maria Pia, espanhola que trabalhava como doméstica na Avenida Atlântica; Paulo Mato, ex-jogador de futebol; Antônio Carlos de Oliveira, ex-ator que perdeu a audição durante uma gravação; e Carlos e Maria Regina, casal que se conheceu por meio de classificados de jornal.
Histórias que denotam solidão, superação e que criam uma identidade com o telespectador. “Estou meio ansioso demais, espero ficar calmo. Tentar fazer um filme significa viver. Sobreviver”, afirma o diretor em cena.