- Portugal Giro: Presidente de Portugal promulga pacote anti-imigração que prejudica brasileiros
O bisavô de Salvador Patrício Gouveia, Jerónimo Lacerda, fundou Caramulo em 1921 como um resort para doenças da época. Seu avô e seu tio-avô criaram o Museu do Caramulo na década de 1950. Mas, há alguns anos, o museu enfrentava dificuldades.
Caramulo é um local remoto, e poucos turistas se dispunham a fazer a viagem de três horas a partir de Lisboa. Com uma receita anual de € 2 milhões (US$ 2,3 milhões ou R$ 12,7 milhões), o museu mal conseguia cobrir os custos de manutenção, disse Patrício Gouveia.
O ponto de virada ocorreu durante um almoço de Natal em 2023, quando Patrício Gouveia soube pela primeira vez que o museu poderia se qualificar para receber doações por meio do programa de golden visas de Portugal, que permite a estrangeiros obter residência em troca de investimentos ou doações filantrópicas.
— Fiquei ali, com os ouvidos atentos, pensando que isso finalmente nos permitiria realizar coisas realmente ambiciosas — disse Patrício Gouveia.
Agora, o museu exibe um cartaz com uma lista de doadores de países como China e Estados Unidos. Em apenas dois anos, o museu arrecadou mais de € 20 milhões (US$ 23,3 milhões ou R$ 127 milhões.
— Foi uma mudança completa de jogo — afirmou ele.
O programa de golden visa de Portugal foi lançado em 2012, durante a crise financeira do país. Inicialmente, o esquema permitia que estrangeiros se qualificassem investindo pelo menos € 500 mil (US$ 583, 4 mil ou R$ 3,2 milhões) em um imóvel em Portugal.
- Eleições em Portugal: Partido do governo conquista prefeituras de Lisboa e Porto
Essa opção terminou em 2023, após ser responsabilizada por agravar a crise habitacional naquele que se tornou o mercado imobiliário mais aquecido da Europa. Outros países europeus abandonaram ou reduziram seus programas, mas o de Portugal foi redirecionado para novas formas de investimento.
Atualmente, a maioria dos investidores do golden visa opta por fazer uma doação mínima de € 200 mil (US$ 233,3 mil ou R$ 1,3 milhão) a uma organização cultural sem fins lucrativos, como o Museu do Caramulo, ou por investir ao menos € 500 mil (US$ 583, 4 mil ou R$ 3,2 milhões) em um fundo de investimento aprovado para este fim.
Em 2024, o primeiro ano completo desde que o governo aboliu a opção imobiliária, as aprovações de golden visa aumentaram 72%, atingindo o recorde de 4.990. Para lugares como Caramulo, o programa tem sido um sucesso retumbante, trazendo dinheiro e visitantes. Mas, em outras partes do país, o formato do programa levantou questionamentos sobre se o dinheiro não seria melhor aplicado em saúde, educação e infraestrutura.
— Seria interessante ver parte desses fundos sendo usada para melhorar setores da economia que enfrentam sérias dificuldades — disse João Duque, professor de finanças da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. — Precisamos de hospitais, escolas e moradias acessíveis para resolver a crise habitacional.
- Diplomacia: O que a reunião de Vieira e Rubio significa para a estratégia do Brasil contra o tarifaço?
O programa de golden visa de Portugal arrecadou mais de € 7 bilhões (US$ 8,7 bilhões ou R$ 45 bilhões) desde que foi criado, há mais de uma década. A maior parte desse dinheiro foi direcionada ao setor imobiliário, ajudando a transformar a capital, Lisboa — de uma cidade tranquila e envelhecida, repleta de prédios degradados — em um dos destinos imobiliários mais cobiçados da Europa.
— Foi muito importante para ajudar Portugal a se recuperar de uma situação terrível — disse Paulo Portas, que, como ministro das Relações Exteriores em 2012, lançou o golden visa. — É uma boa ferramenta para atrair investimento.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/U/C/Fn28dXQ5KTyVSjKR1Kyg/portugal-6-bloomberg.jpg)
Países europeus como Espanha, Grécia e Chipre lançaram programas semelhantes, inspirados no modelo português voltado para o setor imobiliário — com a Grécia adotando um valor de entrada ainda mais baixo, de € 250 mil (US$ 292 mil ou R$ 1,6 milhão), para competir com Lisboa.
Portugal rapidamente se tornou um dos destinos mais populares, já que os preços dos imóveis eram relativamente mais baixos do que em outros países europeus e porque os requerentes precisavam passar apenas uma semana por ano no país para se qualificarem para o visto, que oferece um caminho para a cidadania da União Europeia.
- Em quase dez anos: População brasileira em Portugal aumenta 470%
Mas o aumento da demanda elevou os preços dos imóveis em cidades como Lisboa, Porto — a segunda maior cidade de Portugal — e outros pontos turísticos do litoral. Estrangeiros de fora da União Europeia normalmente compravam casas por cerca do dobro do valor pago pelos compradores portugueses, enquanto um estudo do Observatório Fiscal da UE constatou que os imóveis situados no limite de € 500 mil eram vendidos com um ágio de 10% a 15%.
O desequilíbrio contínuo entre a alta demanda e a baixa oferta fez com que Portugal registrasse a pior queda na acessibilidade habitacional entre os países ricos da OCDE na última década.
Em 2023, milhares de pessoas foram às ruas das principais cidades portuguesas para protestar contra o aumento dos custos de moradia e dos aluguéis. O então governo socialista respondeu retirando o setor imobiliário do programa de golden visa, com o objetivo de conter os preços, ampliar a oferta de imóveis para arrendamento e incentivar o investimento em outras áreas — argumentando que o capital seria mais bem direcionado para setores produtivos e iniciativas geradoras de emprego.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/L/2/UsygABTo2NYTb0urIgjA/portugal-1-bloomberg.jpg)
Em toda a Europa, os países estão endurecendo ou abandonando seus programas de golden visa. A Espanha encerrou sua versão em abril, com o governo do primeiro-ministro Pedro Sánchez atribuindo ao programa a disparada dos preços dos imóveis.
Irlanda e Holanda fecharam seus programas de golden visa para novos candidatos, enquanto o chamado “passaporte dourado” de Malta foi considerado ilegal, no início deste ano, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A Grécia aumentou recentemente o valor mínimo de investimento para o golden visa para € 400 mil (US$ 467 mil ou R$ 2,5 milhão) — ou € 800 mil (US$ 933 mil ou R$ 5 milhões) em áreas de prestígio, como Atenas ou as ilhas de Mykonos e Santorini.
- Nova Zelândia flexibiliza regras do Golden Visa: Veja que outros países oferecem o ‘visto dourado’
O governo de centro-direita de Portugal insiste que não seguirá o mesmo caminho, mesmo com o crescimento das dúvidas sobre se a residência em troca de dinheiro realmente traz benefícios significativos para a população local.
As autoridades prometeram reformas “econômica e socialmente justas”, mas os críticos afirmam que o programa ainda canaliza recursos para investimentos com pouco impacto em empregos, inovação ou crescimento de longo prazo.
Para quem busca retorno sobre o capital investido, a rota mais comum do golden visa agora é por meio de fundos de investimento. Para se qualificarem, esses fundos devem aplicar mais de 60% de seus recursos em ativos domésticos, como títulos, ações ou projetos locais — incluindo iniciativas agrícolas e de energia solar.
Com investimento mínimo de € 500 mil, o valor ainda é significativamente menor do que o preço de US$ 1 milhão proposto no “cartão dourado” de residência do então presidente dos EUA, Donald Trump.
- ‘Visto ouro nos EUA’: Veja lista de países que cobram valores astronômicos para residência legal
De acordo com um relatório divulgado na quinta-feira pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), os cidadãos dos Estados Unidos formaram o maior grupo de beneficiários de golden visa em 2024, seguidos pelos chineses e russos.
Dinheiro para a agricultura
O fundo Pela Terra, sediado em Lisboa, utiliza o capital dos golden visas para cultivar amêndoas e oliveiras em 3 mil hectares de terras em Portugal. Já arrecadou mais de € 75 milhões (US$ 87,5 milhões ou R$ 477 milhões) em dois fundos, com investidores de 27 países. A proposta é promover uma agricultura sustentável que gere retornos financeiros ao mesmo tempo em que revitaliza áreas rurais. Para investidores como Jim Davidson, um americano que aplicou no Pela Terra, esse aspecto comunitário foi o fator decisivo.
— Você está comprometendo capital em um fundo que investe em agricultura, em coisas que ajudam o país a crescer —disse Davidson, residente de Denver, no Colorado. — Decidi investir porque isso também me dará o direito à residência portuguesa, caso um dia eu queira morar na Europa.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/c/n/wNEhx1QA2IbLDG3APr6g/portugal-3-bloomberg.jpg)
Parte dos fundos do programa de golden visa flui diretamente para o mercado de ações. Pedro Lino, diretor-presidente da Optimize Investment Partners, uma gestora de ativos com um fundo de golden visa que investe em ações e títulos portugueses, afirma que alguns clientes preferem essa opção ao setor imobiliário porque “não é preciso perder tempo procurando casa”. Ele estima que esses investimentos representem cerca de 2% do capital em livre circulação na Bolsa de Lisboa.
Mas alguns questionam o impacto econômico mais amplo de direcionar os investimentos dos golden visa para esses mercados, observando que, mesmo os fundos plenamente regulamentados podem alocar capital em ativos que acabam não sendo originalmente portugueses, como produtos ligados a criptomoedas.
- Visto americano: Cobrança de nova taxa de US$ 250 é suspensa temporariamente
Outros parecem mais próximos do setor imobiliário, voltando-se para áreas como a hotelaria — apartamentos de curta estadia ou hotéis — ou negócios que operam lojas de alimentos e varejo.
— Os governos estão ficando cansados da questão dos golden visas porque o mercado continua encontrando brechas — disse Stephan de Moraes, fundador da empresa de capital de risco Indico Capital Partners.
Moraes está promovendo seus fundos como uma resposta às críticas de que o dinheiro é direcionado a ativos improdutivos, oferecendo aos investidores exposição a startups de inteligência artificial e empresas de tecnologia.
— Ainda acredito que o programa de golden visa é bom e que ele pode funcionar; só me preocupo com a possibilidade de uma nova reação política contrária a tudo isso — afirmou.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/a/2/ki0oUKR3KqBycxgBgAog/portugal-4-bloomberg.jpg)
Fazer doações em troca do direito de residência exige menos capital inicial, mas não oferece retorno financeiro. Para alguns participantes do programa, contudo, essa opção representa uma maneira melhor de criar vínculos com as comunidades locais.
— Parecia que alguns dos fundos eram administrados apenas por um bando de jovens ricos — disse James Davis, geólogo do setor de petróleo e gás no Texas, à Bloomberg. — Definitivamente vi uma conexão melhor em fazer algo como uma doação, em vez de investir em um fundo.
Plano B para risco político nos EUA
No início deste ano, Davis doou € 250 mil (US$ 292 mil ou R$ 1,6 milhão) à Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, que administra um museu de artes decorativas e uma escola dedicada ao ensino e à preservação do artesanato tradicional. O investimento será destinado à restauração de móveis de madeira no Palácio Azurara, do século XVII, sede da fundação, localizado em uma colina de Lisboa com vista para o Rio Tejo.
Ao obter o direito de residência em Portugal, Davis diz que passará a ter opções caso a situação nos Estados Unidos se deteriore.
— Eu queria um plano B, já que há risco político nos EUA — afirmou.
Aos 51 anos, ele diz também sentir orgulho em saber que sua doação deixará um legado duradouro.
— O dinheiro se foi, mas terá um impacto permanente na fundação, e isso é realmente importante — acrescentou.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/o/u/hqakPETFGaBtYA6gBCKQ/portugal-2-bloomberg.jpg)
Atualmente, existem 17 projetos culturais elegíveis para doações via golden visa, segundo uma lista publicada pelo governo. Alguns em Portugal acreditam que esse dinheiro filantrópico poderia ser melhor direcionado a áreas que enfrentem de forma mais direta os desafios sociais do país.
Embora a economia portuguesa esteja crescendo mais rapidamente do que a média da zona do euro, o país continua sendo uma das nações mais pobres da Europa Ocidental. O sistema público de saúde sofre com financiamento cronicamente insuficiente e escassez de pessoal, enquanto as escolas públicas enfrentam salas de aula superlotadas e instalações obsoletas. A habitação pública representa apenas cerca de 2% do total de imóveis, uma das menores proporções da região.
— É evidente que parte desse dinheiro poderia ser usada para melhorar a vida das pessoas comuns em cidades como Lisboa, onde o aumento do custo de vida está expulsando os moradores locais — disse Isabel Sá da Bandeira, líder do grupo de campanha People Live Here, que defende os interesses dos residentes comuns de Lisboa. — Precisamos de melhores escolas, hospitais e espaços verdes.
Sara Rebolo faz parte de um grupo de advogados que deseja incluir a habitação acessível na lista de opções do golden visa. Ela fundou a Prime Legal, um escritório de advocacia que oferece suporte jurídico aos candidatos.
— Há muito potencial para atrair investimento e financiamento direto para projetos portugueses. Acredito que o programa vai durar bastante tempo, mas há a possibilidade de que ele precise ser ajustado para se adaptar às necessidades do país e da sociedade. — afirmou.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/V/8/8OLCH8SOGA9mASVpDXBQ/portugal-8-bloomberg.jpg)
Mas em Caramulo, Patrício Gouveia, ávido colecionador de tudo, desde brinquedos e cartazes antigos até artefatos da Segunda Guerra Mundial, afirmou que o dinheiro do golden visa mudou a sorte da cidade, que de outra forma poderia ter aprofundado sua decadência.
O museu passou por reformas estruturais, comprou alguns tanques novos e outros veículos de guerra, além de edifícios para abrigá-los. Agora, tem recursos para manter adequadamente mais de 200 veículos, incluindo um super raro Bugatti 35B e o Lamborghini Miura P400 SV de 1971. Um museu de brinquedos também está em planejamento.
‘Caramulo está no meio do nada, e o dinheiro está ficando aqui’
Os fundos do golden visa ajudaram o Museu do Caramulo a organizar o envio de uma coleção histórica de carros de Fórmula 1 pertencentes a Emerson Fittipaldi, bicampeão mundial de Fórmula 1 do Brasil. Fittipaldi visitou Caramulo pela primeira vez em 2022.
A repercussão em torno do museu atraiu um número recorde de visitantes à cidade, que tem apenas mil habitantes. Em setembro, 50 mil pessoas participaram do Caramulo Motor Festival, entupindo as estreitas ruas da cidade com carros e motocicletas. O número de visitantes do museu chegou a 60 mil em 2024, com previsão de crescimento para este ano.
— Não se esqueçam de que Caramulo está no meio do nada, e o dinheiro do golden visa está ficando bem aqui, para que as futuras gerações possam aproveitar. É uma oportunidade que nunca mais se repetirá. Ou a agarramos com as duas mãos ou corremos o risco de ficar para trás —ressaltou Patrício Gouveia.