O Yellow Bittern, misto de livraria e restaurante de 18 lugares perto da estação King’s Cross, não se parece nem um pouco com o estabelecimento mais polêmico de Londres. De fato, lembra a casa de um professor aposentado no interior: o cliente toca a campainha para entrar e pendura o casaco em um dos ganchos à porta enquanto espia as panelas de cozido irlandês borbulhando na minúscula cozinha aberta. A comida é substanciosa, servida bem quente, acompanhada de potes de mostarda. A decoração inclui livros sobre Bertolt Brecht e um acordeão.
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Só que a qualidade dos pratos e o ambiente não são os únicos motivos por que os principais críticos gastronômicos, chefs e gourmets da cidade o frequentam e se manifestam; a curiosidade de muitos e o interesse na polêmica têm a ver com o cozinheiro-chefe: Hugh Corcoran, comunista ferrenho que usa e abusa do Instagram e que conseguiu revoltar metade da cidade desde a inauguração da casa, em outubro passado.
— Chego a festas e a jantares e logo de cara já começamos a falar do Yellow Bittern. Não se discute outra coisa — confirmou Margot Henderson, chef do Rochelle Canteen, de East London, e pioneira da culinária britânica moderna.
Boa parte dessa discussão tem a ver com a questão de classes, como é tão comum no Reino Unido. O Bittern só aceita dinheiro vivo, abre ao meio-dia e serve até as 14h, só durante a semana. Os críticos reclamam que poucos são os londrinos que podem desfrutar uma refeição farta no meio do dia, acompanhada por uma garrafa de vinho, e menos ainda os que conseguem justificar uma refeição que chega fácil a US$ 300 para quatro pessoas. E a sugestão de que isso é perfeitamente possível — dada por um homem que tem um desenho imenso de Vladimir Lênin no salão — deixa muita gente irritada.
“A comida é boa, mas é o mesmo que perguntar aos passageiros do Titanic se comeram bem. Tem muitas outras coisas envolvidas”, escreveu Jonathan Nunn, fundador da publicação gastronômica “Vittles”, por e-mail depois da visita à casa.
Não é nem que o Bittern seja desproporcionalmente caro: Corcoran, de 35 anos, é um dos muitos chefs londrinos que servem comida caseira com toques sofisticados, inspirado pela culinária britânica moderna que ganhou corpo nos anos 1990 e hoje reina na cidade. Essa abordagem sustentável é mais marcante no St. John, cadeia de restaurantes da qual o chef Fergus Henderson, marido de Margot Henderson, é um dos sócios.
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Corcoran — que é de Belfast, não encara a Irlanda do Norte como um Estado legítimo e tem passaporte da República da Irlanda — se inspira mais na terra natal do que no Reino Unido. Além disso, é influenciado pela França e pelo País Basco, onde já viveu e cozinhou.
Mas o falatório tem menos a ver com suas habilidades culinárias do que com suas críticas. Tudo começou duas semanas depois da inauguração, quando Corcoran, que também compra vinho para a adega bem-suprida do Bittern, foi ao Instagram bronquear com os clientes. “Restaurante não é banco de praça”, escreveu, criticando quem dividia os pratos e identificando quem não consumiu bebida alcoólica. “Vocês estão ali para gastar.”
A postagem deixou os londrinos em choque, principalmente porque a cidade tem fama de usar uma linguagem e adotar uma postura extremamente educada e cheia de não-me-toques no dia a dia. Todos os críticos escreveram elogios e textões, resenhas e críticas incendiárias, mas a agitação só serviu para alimentar ainda mais o interesse: formadores de opinião como Alice Waters foram até lá; Henderson, Nigella Lawson, o chef David McMillan e o escritor Hilton Als também.
A refeição pode começar com pão irlandês com fartas porções de manteiga e uma sopa sedosa de alho-poró. Há pratos principais como a torta de carne de coelho e de galinha d’angola, que chega à mesa dourada e fumegante. Gotículas de gordura flutuam no coddle saboroso, mesmo que o ensopado já tenha sido considerado prato de pobre. Na sobremesa, a torta de maçã tem a opção de ser servida com creme. Há quem desabotoe a calça depois de uma rodada de biscoitos digestivos. Muitos continuam sentados depois que os donos começam a limpeza.
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Alguns fãs mais entusiasmados veem Corcoran e os sócios — Lady Frances Armstrong-Jones e Oisín Davies, que cuida da livraria no subsolo — como um trio de excêntricos rebelados contra a ideia abusiva de que o freguês sempre tem razão. Outros defendem a casa como reação mais que bem-vinda à “frescura da comida de pinça”, mas a enxurrada mais forte de críticas zomba do Bittern com bom humor, classificando-o de “rede de paradoxos teatrais”. “Servem um refogado a 20 libras e ainda sugerem um tinto orgânico de Borgonha de 90 libras para acompanhar? Isso é uma fetichização de uma vida da classe operária que nunca existiu”, declarou David Ellis, crítico gastronômico do “The Standard”.
Os donos encaram de outra forma. Primeiro, porque afirmam nunca ter dito que o Bittern era voltado para o público trabalhador.
— Temos de manter o negócio. Quem frequenta é porque tem condição. E o comunismo tem a ver com os direitos dos trabalhadores, os horários que querem manter, e não aqueles em que os clientes querem comer. Qual é a solução? Abrir uma casa que funcione sete dias por semana e nos force a contratar um caminhão de gente e a explorar sua mão de obra? — rebateu Corcoran.
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Ele também acha que o londrino não deveria só deglutir um sanduíche rápido na hora do almoço, mas sim poder comer e conversar — ou seja, saborear uma refeição, e não comer qualquer coisa:
— É esse o tipo de sociedade que estamos tentando criar? Temos de brigar para exigir horário de almoço. Na verdade, as críticas podem ser frustração, sabe? O restaurante faz com que muita gente se conscientize de que não pode se dar ao luxo de tirar duas horas no meio do dia.
Armstrong-Jones, de 45 anos, que também edita e publica a revista “Luncheon”, é quem administra o ambiente do Bittern. Simpática e bem-relacionada, a hostess e garçonete faz questão de que todo cliente se sinta à vontade:
— Meu objetivo é criar um espaço aconchegante e acolhedor.
Entretanto, mesmo sem querer, ela contribuiu para reforçar a controvérsia: afinal, seu pai, Antony Armstrong-Jones, era o duque de Snowdon, fotógrafo famoso e marido da princesa Margaret, irmã da rainha Elizabeth II. Os críticos usam sua linhagem para atacá-la e também a Corcoran, seu companheiro.
— É simplista demais. O pessoal fala porque somos “o comunista e a aristocrata”, tipo, clássico mais que manjado — comentou ele.
Armstrong-Jones é da mesma opinião:
— Meu sonho é criar um lugar onde as pessoas se sintam bem-recebidas, acolhidas, satisfeitas. Sim, sou de família rica, mas focar apenas isso é meio que dizer que não tenho valor nenhum.
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Corcoran reclama que suas raízes também estão sendo usadas contra si:
— É a típica atitude de quem valoriza o restaurante por eu ser irlandês, mas quer que eu trabalhe de cabeça baixa e não venha querendo dizer o que se deve fazer. Meu compromisso inabalável é pela unificação das duas Irlandas e tenho muito orgulho disso. Em Belfast você não tem outra opção a não ser político. Ser polêmico e brigar por sua opinião faz parte do dia a dia.
É assim também que encara os clientes — nem sempre só certos, nem sempre só errados, mas sim como parceiros. (“Em um lugar tão pequeno, é importante definir seu estilo logo de cara”, afirmou.)
— Eles mantêm a casa aberta; em troca, comem e bebem. Espero que gostem da comida, porque faço questão de caprichar. Não tenho a ilusão de que as pessoas venham aqui achando que é a melhor da cidade, mas sim porque é um ambiente gostoso que podem desfrutar.
Pelo menos por enquanto, o Yellow Bittern não só está aberto como dá lucro; os sócios têm um contrato de aluguel de dez anos, ou seja, se conquistarem 36 clientes, cinco dias por semana, já estão bem.
— Lotamos praticamente todo dia desde a inauguração. Sinal de que tem bastante gente com tempo para almoçar, né? — concluiu.