Lenta e deliberadamente, uma figura vestida de preto derrama leite sobre os seios e a barriga inchada de uma mulher grávida, que ondula sensualmente em uma cadeira. Ao lado, uma noiva jaz imóvel em uma cama, enquanto seu rosto é laboriosamente pintado com círculos multicoloridos. Perto dali, dançarinos balançam juntos ao som de uma música animada e, em seguida, vestem um homem deitado nu em um caixão.
— Este é o projeto mais exigente, difícil e insano que já fiz — sussurra Marina Abramovic. Ela sorri alegremente.
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Abramovic não é estranha a projetos exigentes, difíceis ou insanos: entre outras coisas, a artista performática sérvia gritou até perder a voz; deitou-se em blocos gigantes de gelo por horas; convidou o público a fazer o que quisesse com seu corpo, usando pregos, fósforos, uma serra e uma arma; e permaneceu imóvel, olhando nos olhos de estranhos, durante sete horas por dia, ao longo de três meses, em “The artist is present”, a exposição de 2010 no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York.
O projeto que, segundo ela, supera tudo isso é “Balkan erotic epic”, que estreia nesta quinta-feira (9) no Aviva Studios em Manchester, Inglaterra. No ano que vem, fará uma turnê internacional, com uma parada no Park Avenue Armory, em Nova York.
A peça apresenta mais de 70 artistas, incluindo dançarinos, músicos e cantores, que aparecem em 13 cenas inspiradas no folclore e nos rituais dos Bálcãs. Inspiradas no erótico como fonte de vida, fertilidade e poder, as cenas têm títulos como “Assustando os deuses para parar a chuva” (com mulheres expondo suas vaginas para o céu), “Massageando o seio” e “Poções mágicas” (uma cantora ladeada por projeções de falos de cinco metros de altura).
— Na cultura dos Bálcãs, os genitais eram usados em rituais para se conectar com os espíritos e os deuses — disse Abramovic em uma entrevista antes de um ensaio. — Será completamente mal compreendido na Grã-Bretanha, é tão puritano aqui. Mal posso esperar.
“Balkan erotic epic” é uma nova abordagem para Abramovic: uma obra de arte performática, na qual o público é livre para circular à vontade, que também apresenta elementos de cinema, animação e teatro, como coreografia, figurinos elaborados, cenografia, música e design de iluminação.
A arte performática é diferente do teatro, diz Abramovic: “A performance é a coisa real; vida é vida, sangue é sangue.” Mas ela acrescenta que, quando se aventurou no teatro — para criar “A vida e a morte de Marina Abramovic”, de Robert Willson, e sua própria ópera, “As 7 mortes de Maria Callas” — percebeu que podia “ir tão fundo quanto uma personagem, explorar a mesma vulnerabilidade, perguntas sem resposta ou dor. Quero fazer isso em ‘Balkan Erotic’ — não inventar nada”.
A primeira cena que o público encontrará, diz Abramovic, é “O funeral de Tito”, um lamento comovente e cantado pelo líder da Iugoslávia comunista, onde Abramovic cresceu como filha de fervorosos apoiadores do partido.
Sua mãe, Danica Abramovic, também está lá, interpretada por Maria Stamenkovic Herranz, a única artista que transita entre as cenas.
— Minha mãe nunca me beijou, nunca me tocou — diz Abramovic. — Nesta peça, algo emocional começa a acontecer com ela; posso libertá-la de uma forma que ela não poderia ser em vida.
Abramovic, que completa 80 anos no próximo ano, tem se inspirado frequentemente em suas origens balcânicas ao longo da carreira. Em 1997, quando ainda era pouco conhecida fora das esferas rarefeitas da arte performática, passou quatro dias esfregando ossos de vaca ensanguentados e cantando canções folclóricas em um porão úmido na Bienal de Veneza para “Barroco balcânico”, uma expressão de ambivalência em relação à sua terra natal que lhe rendeu o Leão de Ouro, o prêmio máximo da Bienal. Depois de fazer um filme, “Erótico balcânico”, em 2005, mostrando rituais folclóricos envolvendo seios e genitais, ela continuou lendo e refletindo sobre o assunto.
— Eu queria fazer algo em grande escala — diz, citando sua experiência no festival de música de Glastonbury de 2024, quando, vestida como uma sacerdotisa de túnica branca, conduziu 250 mil pessoas em um silêncio de sete minutos. — Foi inacreditável sentir esse tipo de energia. Depois disso, eu queria um público maior. Estou pronta para mostrar algo surpreendente, perturbador, doloroso, melancólico, bem-humorado, feliz.
Bettina Busse, curadora de uma nova exposição sobre Abramovic que abre esta semana no Museu Albertina, em Viena, disse que a preocupação da artista com sua herança é “consistente, mas ela não faz as mesmas coisas”:
— Ela não consegue se apresentar como fazia aos 65 anos, é preciso muita força física. E ela precisa de desafios. Acho que para ela este é um novo começo e uma nova parte de seu trabalho.
Abramovic disse que começou “com talvez cerca de 300 rituais”, reduzindo para 13, vindos de várias partes dos Bálcãs. Assim que havia um conceito para cada cena, os ensaios eram supervisionados por Billy Zhao, curador do Instituto Marina Abramovic, especializado em performances de longa duração.
— Na maioria das vezes, Marina nos deixa desenvolver as coisas— diz ele. — Depois, ela entra, empurra as coisas e edita.”
Os ensaios têm sido exaustivos e emocionantes, diz Alison Matthews, uma das artistas da cena “Assustando os deuses”:
— O processo é simplesmente fazer a ação repetidas vezes (neste caso, levantar a saia). Mas quão rápido, quão intenso, quão gentil? São opções que Marina e Billy nos convidaram a experimentar.
Abramovic, acrescentou Matthews, está “realmente determinada a mostrar o erótico como um portal para os ciclos da vida, não como algo comercialmente sexual”. Em certo sentido, diz ela, Abramovic estava trabalhando como uma diretora de teatro, embora naquela cena parecesse “mais como estar em uma pintura. Ela sabe o que quer esteticamente”.
À medida que a estreia se aproximava, Abramovic disse que estava “meio feliz e em pânico”.
— Fiz tudo o que podia fazer — acrescenta. — No meu próprio trabalho, sei tudo em detalhes. Aqui não. Mas é por isso que é tão especial.
Ela diz que planejava continuar se apresentando, mas que já tem uma ideia de algo para os seus 80 anos, brincando que poderia até fazer uma aparição em “Balkan erotic epic”.
— Eu amo a velhice. Sofri tanto quando era jovem. Agora, cada dia é como um milagre.