A música provoca impacto profundo na mente humana, afeta emoções, cognição, memória e bem-estar – e podemos provar. Basta ver a catarse coletiva promovida pelo show da Lady Gaga em Copacabana, Rio de Janeiro, nesse sábado (3). E não foi só no público que o espetáculo bateu fundo. Especialistas do showbusiness, das artes e da comunicação brasileiras ficaram impactados com a apresentação carioca da cantora americana.
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Diretor da turnê “Tempo rei”, com a qual Gilberto Gil viaja pelo Brasil, Rafael Dragaud destrincha vários aspectos artísticos do que viu em cena para chegar no ponto que considera mais importante: a mensagem.
– Figurinos deslumbrantes, bailarinos de precisão impecável. O palco, uma catedral de luzes e tecnologia, mas tudo servindo apenas como moldura para o que realmente sequestrou meu olhar: uma artista que, num paradoxo fascinante, emanava extrema fragilidade e força colossal simultaneamente. Esta vulnerabilidade assumida, esta coragem de mostrar-se humana, estranha e bela ao mesmo tempo, foi o próprio espetáculo e um ato revolucionário para mim – define.
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Para além da performance musical ou da arte pop autêntica, Dragaud conta que testemunhou a manifestação de algo que ultrapassou a ideia de um show de música.
– Ouvi uma voz com propósito social que transforma hits comerciais em manifestos. Seu compromisso com a arte genuinamente política e o respeito tangível pelo público criaram uma conexão que senti profundamente – diz. – Para mim, é impossível não estabelecer um diálogo com a recente apresentação da Madonna. Vejo algo profundamente significativo nestas mulheres desafiadoras ocupando espaços públicos e como isso ressoa conosco, brasileiros, numa frequência inequivocamente política. Ocupar as ruas sempre será um ato político, e ontem não foi exceção. Eu não vi apenas um show, mas presenciei uma manifestação de mais de 1,6 milhões de pessoas, celebrando a liberdade de identidade.
O diretor resume o que sentiu como “uma visão de mundo traduzida em arte, entretenimento com propósito”.
– E mesmo não sendo um little monster declarado, senti uma urgência visceral de ter um leque para me abanar e expressar minha profunda admiração pelo público LGBTQIAP+ que tomou pacificamente as areias e ruas de Copacabana, que, mais uma vez, confirmaram sua vocação como um dos palcos mais importantes e consagradores do planeta.
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Giovanni Bianco, diretor criativo que já trabalhou com Madonna, Ivete Sangalo, Anitta, Ludmilla, entre outros, destaca cenário e figurinos “poderosos”. Mas é outro a dizer que a apresentação a que assistiu ao vivo da área vip de uma cervejaria foi muito além da estética.
– Fiquei encantando e feliz de perceber o poder da música, do espetáculo, o quanto isso é importante para a arte. Os vestidos gigantes e as roupas minimalistas teatrais, o uso das cores da bandeira brasileira, que criou conexão direta com o público. Mas o show foi mais do que ficar percebendo cenografia – diz. – A magia que ela criou nesse espetáculo foi tão mais forte que tudo. Impressionante ver a galera inteira conectada. Isso tem uma profundidade em relação à cabeça das pessoas. Gaga é uma artista genial, que provocou uma emoção única. Ver todo mundo cantando , a vibração e toda a emoção dela foi demais. Um mar de pessoas felizes, o momento do leque…. Todo mundo sem conseguir piscar o olho, dançando ou cantando.
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O cenógrafo e diretor Gringo Cardia chamou a atenção para “técnica impecável e a parafernália gigante” da apresentação histórica de Gaga no Rio, “com tudo funcionando perfeitamente”.
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– Uma coisa impressionante é que, cada vez mais, os cenários dos shows são o próprio show filmado, o audiovisual do que está no palco. Esse não tinha quase computação gráfica nenhuma. Eram a imagem da cena feita com com câmeras maravilhosas, definição de imagem e movimento espetaculares. A iluminação linda complementa, amplia o resultado visual no palco. O “palco desfile”, comprido, que vai lá na frente. A coisa mais linda foi aquela descida dela, a cara das pessoas sendo cenário do show. E ela entregue. Foi bonito e isso é uma coisa bem de atriz.
Para Gringo, “a Praia de Copacabana virou a nossa Broadway” de vez.
– O Rio já está histórico no mundo todo com esses shows, sendo conhecido como um lugar de excelência. O clima da cidade fica bacana, com tanta gente vibrando junta e na paz. A própria Gaga destacou como a música é importante para nós. A energia do Rio é o grande cenário que surpreende os artistas que vêm para cá. Gaga tinha uma relação, mas não tão profunda, e agora falou: “Agora, a gente é uma família”. Ela viu a emoção, foi arrepiante. Isso é o mais bacana da nossa cidade, o que nos dá orgulho. O grande potencial do Rio, além da beleza natural é a beleza das pessoas de se entregar, sentir as coisas e como a música é importante porque conecta as boas energias do povo brasileiro e da nossa cidade.
Os dias que antecederam o show, com gente do Brasil todo fazendo festa na porta do Copacabana Palace, já tinham servido de termômetro para medir a temperatura do clima que se daria no show, segundo Gringo:
– As pessoas representando a própria Gaga em várias fases…. O Brasil é o Brasil, e o Rio é único por ser uma cidade da criatividade, da irreverência. Tudo que é irreverente o Rio adora. E Gaga tem essa irreverência juvenil. Por isso teve mais publico que Madonna, a juventude fica enlouquecida em poder ser respeitada, ouvida através dela. Se o show da Madonna foi uma ópera pop, o show da Gaga foi uma ópera mesmo, gótica, anos 80. É um resgate, mas ao mesmo tempo fala com uma juventude LGBTQIA+. Se a Madonna fala para os mais velhos, a garotada agora está vendo de novo uma cantora cantando a liberdade de ser o que é.
Gringo arrisca dizer que Gaga “vai ser a grande guerrilheira desses tempos medievais fascistas que os Estados Unidos estão atravessando”.
– É uma defensora dessa liberdade e passa a ganhar um valor muito maior porque é a voz de defesa que, com sua arte, enfrenta o fascismo retrógrado que o mundo está vivendo. É a artista mais importante do mundo. Porque fala sobre identidade, fragilidade. É também uma atriz, que se emociona de verdade. Ela não tem tudo no script, sente emoção na hora e, num show tão grandioso, é difícil ter abertura para isso. Mas ela sendo uma atriz, deixa isso acontecer – diz. – Fico feliz porque representa essa juventude que tem que lutar para se colocar na vida. Incentiva a liberdade para todo mundo.
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Professora de semiótica da USP, Claudia Garcia Vicentini faz uma investigação mais filosófica da proposta do espetáculo:
– Numa análise semiótica, vou para uma linha “bakhtiniana” (pensamento do filósofo russo da linguagem Mikhail Mikháilovitch Bakhtin) de realismo grotesco, em que ele retoma o banquete do François Rabelais e fala da Idade Média, do Pantagruel. O show faz uso bacana dessas referências muito bem costuradas – analisa. – A presença dela de palco e o figurino são muito bem adaptados a essa encenação toda, tudo impecável. A gestualidade é bem amarrada não sobra nada para o acaso. Isso pode suscitar uma discussão sobre espontaneidade, mas por outro lado, se a gente pensar por um olhar mais do technopop, do uso de tecnologias artificiais de luzes e toda a cenografia, dialogam com a nossa época. Além das questões que ela propõe, abordando nas músicas o modo de vida das pessoas, de nascerem como são e terem o direito de viver como querem trazendo o que é diferente, o que seria considerado grotesco para algo que existe e faz parte da vida. Tudo isso encontra eco no público, deixa as pessoas à vontade. É o carisma de uma das maiores artistas do nosso tempo.