O vendaval arrancou vidraças de prédios, deixou mais de 380 mil imóveis no escuro e centenas de árvores caídas pelas ruas em meio ao temporal que atingiu a cidade de São Paulo ontem, com rajadas de quase 100km/h. Enquanto tempestades como essas devem se tornar cada vez mais frequentes na capital paulista, como alertam meteorologistas, o município ainda carece de políticas públicas adequadas para lidar com os impactos das chuvas torrenciais e ventanias extremas, apontam especialistas ouvidos pelo GLOBO.
- Após fortes chuvas e vendaval: Governo de SP vai usar detentos do semiaberto para limpeza de ruas
- Crítica prorrogação de contrato em estudo no governo Lula: Tarcísio diz que Enel sempre dá a ‘pior resposta’
Na última segunda-feira, o Corpo de Bombeiros registrou 83 chamadas para quedas de árvores na capital. O botânico e paisagista Ricardo Cardim, que já atuou em projetos de reflorestamento na cidade, faz críticas, por exemplo, à forma como a prefeitura faz a gestão do patrimônio verde:
— Precisamos urgentemente de um departamento próprio da prefeitura dedicado exclusivamente a cuidar da saúde das árvores. Além de poucas, as que temos seguem abandonadas, com cimento enforcando (as raízes), cupins e podas mutiladoras.
Em artigo publicado em 2024 na revista Urban Forestry & Urban Greening, pesquisadores de diversas universidades analisaram dados da prefeitura sobre 456 árvores que caíram entre 2016 e 2018. Com ajuda da inteligência artificial, foi possível detectar as principais causas para as quedas, como podas inadequadas, a exemplo das feitas pelas empresas de energia — as chamadas podas em “V”, em que os galhos do meio da árvore são cortados para a passagem de fiação, causando desequilíbrio.
— A cidade precisa de um plano integrado de manejo da arborização. Um plano que seja preventivo, e não emergencial — destaca Giuliano Locosselli, professor da USP e um dos autores do estudo.
Locosselli é um dos coordenadores de um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, realizado em parceria entre a secretaria municipal do verde e a USP. O objetivo é monitorar cem árvores da cidade com sensores, para auxiliar na elaboração de um plano de manejo mais eficiente.
Na Rua Tefé, no Pacaembu, na Zona Oeste, duas árvores despencaram sobre a fiação logo no início do temporal de anteontem. Moradora local desde os 6 anos, a produtora de eventos Vanessa Cristina Matarazzo, de 53, conta que a energia não havia retornado até o início da noite de ontem:
— A rua ficou inteira interditada. Fiquei sem poder trabalhar, enquanto vizinhos com bebês e crianças saíram e foram para casas de parentes. Ficamos tristes porque tínhamos feito vários pedidos de podas nas árvores que caíram.
A poucos quilômetros dali, em um bairro vizinho, um dos afetados foi Antonio Castelo Branco, de 44 anos, presidente da Associação de Moradores Amora Perdizes.
— Ficamos sem elevador, e precisei subir os 11 andares até meu apartamento mais de uma vez. Minha vizinha de porta tem 96 anos e não pôde sair de casa — narra ele.
Levantamento realizado pela associação de Perdizes no primeiro semestre deste ano indica que apenas no bairro há 531 árvores em condições precárias. Destas, são 261 estranguladas por fiações, 63 doentes ou mortas e 16 em risco de tombamento.
Em Higienópolis, Ricardo Gonschior, viu a ventania causar estragos nunca vistos na casa em que vive há 37 anos, na Rua Novo Horizonte:
— O dano todo aqui foi causado em um minuto e meio (de chuva). A porta do meu terraço foi arrancada e jogada para dentro do quarto, o drywall desabou inteiro, pelos menos 800 telhas foram arrancadas. Todas as 15 árvores do meu quintal do fundo caíram, não sobrou nenhuma.
Desta vez, o principal problema, foram as árvores. Mas as enchentes são outro fator que demanda soluções inovadoras do poder público, aponta Antonio Giansante, engenheiro civil e professor da Universidade Mackenzie:
— Precisamos encontrar maneiras de reter a água da chuva dentro do território da cidade sem provocar danos, com bacias de retenção espalhadas embaixo de praças, ir além dos piscinões, e armazenar água em locais apropriados, como o lago do Parque da Aclimação ou do Ibirapuera.
Procurada, a prefeitura de São Paulo informou que possui uma secretaria que trata das mudanças climáticas, além de dois planos específicos voltados para o tema. Também disse que hoje existem 420 jardins de chuva na cidade e mais cem estão previstos, além da ampliação de bosques urbanos, para aumentar a permeabilidade do solo.
“Desde 2021, foram aplicados R$ 8,4 bilhões em obras, serviços, manutenções e intervenções no sistema de drenagem, um aumento de 111% em relação ao período de 2013 a 2020.” A prefeitura também informou que possui 122 equipes que podaram mais de 112.000 árvores desde janeiro.
Diretor de operações da Enel São Paulo, Marcio Jardim diz que a empresa já estava se preparando para o temporal e investiu na manutenção da rede e na poda de árvores. Outra mudança foi o desenvolvimento de sistemas de automação e telecontrole, que incluem equipamentos que podem ser gerenciados à distância.
— Temos um parque de aproximadamente 2.700 religadores automatizados na redistribuição. E também houve o reforço das equipes em campo. Contratamos mais 1.200 eletricistas e aumentamos o centro de controle e de treinamento — afirma Jardim.
Cientistas climáticos alertam que chuvas intensas devem seguir caindo regularmente em São Paulo. A probabilidade de ocorrerem tempestades intensas na época de transição da estação seca para a chuvosa é um fenômeno característico do clima do Sudeste:
— Chuvas a partir de setembro ou outubro sempre foi normal — explica Glauber Ferreira, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). — A questão dos eventos extremos já é um outro porém, pois num cenário de mudanças climáticas é provável que esse tipo de evento fique mais frequente.
Quando se fala de danos à infraestrutura, a grande preocupação na região costumava ser o volume de chuva. Nos temporais dos últimos três anos, porém, o vento teve papel mais determinante na perda de patrimônio. Ainda não há uma explicação específica para a repetição do fenômeno com tamanha frequência.
— Quando nós temos ventos intensos, inclusive com probabilidade de queda de granizo e volumes expressivos de chuva em pouco tempo, tudo isso compõe um pacote típico de evento extremo de chuva — afirma Ferreira.
Já Caroline Vidal, meteorologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), frisa que a mudança climática afeta o clima brasileiro no ano todo, mas a transição do inverno para a primavera, justamente o momento atual, merece mais atenção:
— O aumento de umidade e a elevação de temperaturas nessa transição acabam favorecendo um padrão que contribui para a formação dessas tempestades.
*Estagiária sob supervisão de Pedro Carvalho