O aumento da população em situação de rua não é um fenômeno que só acontece no Brasil. Os países desenvolvidos, como os Estados Unidos, nações da União Europeia e Austrália têm visto a população sem teto aumentar, mesmo antes da pandemia, dizem especialistas.
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Laura Muller Machado, professora do Insper e coordenadora do Núcleo de população em situação de rua da instituição, diz que a questão social está mobilizando a Comunidade Europeia. Na Alemanha, segundo Laura, de 2012 a 2017, houve aumento de 150% na população nessa situação, na Áustria (21%), Irlanda (203% entre 2014 e 2018), Inglaterra (162% de 2010 a 2018), Holanda (71,3% de 2009 a 2016), Bélgica (30% entre 2002 e 2012):
— Dos países que participaram do painel, houve melhora somente na Finlândia. Acontece como no Brasil, onde a população em situação de rua está concentrada em regiões mais ricas. Em Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, a taxa por mil habitantes é de 1,2. Em estados como Pernambuco, Rondônia e Paraíba, é de 0,5 por mil.
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Lá fora, há uma percepção equivocada sobre as causas para situação de rua, de acordo com estudo feito por Machado e mais dois pesquisadores do Insper, Laura Almeida Ramos Abreu e Ricardo Paes de Barros. Na Austrália, “91% da população em geral afirma que o vício em drogas é o principal motivo pelo qual as pessoas estão em situação de rua. Em contraste, quando você pergunta a pessoas que estão ou já estiveram em situação de rua, apenas 10% dizem que o uso de drogas é o motivo pelo qual se tornaram sem-teto”.
A Federação Europeia de Organizações Nacionais que Trabalham com Pessoas em Situação de Rua estima que, em 2022, pelo menos 895 mil pessoas ainda viviam sem teto na Europa.
Segundo a pesquisa da federação, na Alemanha, que fez seu primeiro censo nacional em 2022, foram encontradas 84,5 mil pessoas nessa situação. Na Espanha, são 28,5 mil, aumento de 24% em relação a 2012.
Segundo Laura Machado, a resposta das políticas públicas ainda é frágil e está se testando o que funciona ou não para atender a essa população crescente.
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Há abusos físicos, sexuais, num fenômeno grave e complexo, diz Laura, que alerta que a questão não será resolvida com uma intervenção pontual:
— A pessoa precisa de um atendimento especializado, humanizado, que ajude um plano de vida. A estrutura de rede social precisa ter entendimento dos fenômenos que aconteceram, para dar tratamento a essas sequelas vividas ou praticadas.
Nos EUA, a taxa chega a 6 pessoas sem teto por mil habitantes, bem mais alta que a média do Brasil, de 1,2 por mil. Nos últimos anos, segundo Marco Natalino, sociólogo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o custo do aluguel ficou muito alto no país, levando as pessoas a viverem em situação de rua:
— Na Europa está aumentando também, acho que há efeitos de rebote de pandemia, na saúde mental das pessoas. Lá essa questão do aluguel não parece ser fator principal.
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Uma das medidas que estão sendo tomadas no Brasil seguindo exemplo de políticas adotadas lá fora é o house first adotado nos Estados Unidos. Aqui, o Moradia Cidadã, do governo federal, começa a ser implantando em projeto piloto. A ideia é dar logo a casa, com acompanhamento médico, de assistente social, para reinserção no mercado de trabalho. São 200 casas neste primeiro momento.
No Brasil, as causas também mudam conforme a região do país, segundo Regis Spíndola, diretor de Proteção Social especial do Ministério do Desenvolvimento Social. Em municípios pequenos, quando há até cinco casos por mil habitantes, a pessoa tem uma vinculação com a cidade, está na rua por algum problema de saúde mental.
Existem as áreas de passagem, o que pode ser sazonal, com a economia vinculada a uma questão agrícola, como colheita de café no Sul de Minas. A população em situação de rua tende a migrar para aproveitar a oportunidade de trabalho.
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Há algumas situações especificas, como Boa Vista, no Acre, e em Roraima, com a imigração, que acentua a situação de rua, na divisa com a Venezuela.
— São leituras mais especificas, situação de renda que está associação a outros fatores — diz Spíndola.
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No contexto brasileiro, foi a depressão que empurrou Márcio Campos, de 38 anos, para situação de rua. A morte recente da irmã e casamentos desfeitos foram os fatores que desencadearam o transtorno mental. Ficou quatro meses nessa situação:
—Eu me perdi por isso, não foi droga, foi depressão. Foram as dores. O ser humano, ele não grita, eu não gritei, eu não gritei quando eu estava mal. É o que hoje eu vim dizer para os meus filhos (são três): fala comigo se acontecer alguma coisa, conversa comigo.
Campos, que tem ensino superior completo e fala inglês, está hoje no Albergue Herbert de Souza -Betinho, da Prefeitura do Rio, no Centro. Depois de ter conseguido um emprego como educador social na Secretaria de Assistência Social do município e trabalhar como segurança à noite, Campos está em vias de conseguir seu lugar para morar.
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Ele conta que estava na Praça da Bandeira, com o cabelo grande e sujo de poeira branca depois de ter descarregado um caminhão de material de construção, quando foi abordado pela assistência social:
— Eu estava todo sujo de gesso, horrível, com cabelão, magro, mas aqueles caras lá acreditaram em mim. Eles viram minha orelha (característica típica de lutador de jiu-jitsu, Campos é faixa preta). E eu fui grosso com eles, porque eu não tinha mais nada a perder. Eu já estava cansado, extremamente cansado,
Eles convenceram Campos a dormir no abrigo, viram que ele já tinha participado de alguns torneios:
—Eles falaram, “isso não é para você”. Eles ficaram preocupados comigo de verdade, sabe?
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A partir daí, a vida começou a voltar aos trilhos. Foi encaminhado para o albergue, começou a ter pequenos trabalhos até ser contratado. Ana Amaral é quem acompanha Márcio Campos nessa reintegração:
—É interessante, porque Um dia ele falou assim para mim: “quando eu sair daqui, eu quero fazer terapia com você”. Ele não busca só ganhar dinheiro. Ele busca melhorar como pessoa, como cidadão.