A onda de valorização de ingredientes nacionais nas cozinhas profissionais chega, aos poucos, à farinha de trigo usada nas padarias. No Brasil, esse insumo sempre foi majoritariamente importado, mas a produção nacional de trigo tem crescido na última década voltada para o nicho das farinhas especiais ou artesanais.
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Com moagem diferenciada e produzidas especialmente para a panificação artesanal e de longa fermentação, as farinhas de trigo brasileiras ganham mais espaço nos fornos e têm feito chefs e padeiros renomados deixarem de importar o ingrediente, que nas cozinhas mais sofisticadas geralmente vinha da França e da Itália.
Aberta há dez anos em Botafogo, na Zona Sul do Rio, a padaria Slow Bakery tem o trigo nacional como protagonista em vários itens do seu menu artesanal. Tanto que o dono, Rafa Brito, uniu-se à Fazenda Vargem, em Goiás, para ajudar a desenvolver uma farinha que atendesse às necessidades da panificação. Hoje, a fazenda produz cerca de mil toneladas de farinha por ano e vende sobretudo para padarias brasileiras, com destaque para Rio e São Paulo.
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Francisco Arruda, um dos donos da fazenda, conta que os diferenciais de sua farinha vão desde o cultivo do trigo, que é totalmente irrigado, até o fato de o produto final ser integral e processado no moinho de pedra:
— Antes, os padeiros tinham que comprar farinha integral da Itália e da França porque no Brasil não era fácil encontrar farinha integral de verdade. O que se tinha era farinha branca misturada com farelo de trigo. Com o trigo moído na pedra, a temperatura não fica muito alta na moagem, e os componentes voláteis não se perdem. Quando a pessoa vai fazer o pão ou o bolo, a farinha vai ter um aroma maior que não se tem na farinha tradicional.
Brito diz que na Slow Bakery hoje há vários pães que usam somente farinha brasileira, inclusive o pão “da casa”, mas ele também usa a farinha italiana em alguns preparos, como a focaccia. O custo é semelhante ao do produto importado, mas a qualidade não deixa a desejar, ele garante:
— A primeira vantagem é uma questão nutricional, é uma farinha viva, um produto final melhor. E a segunda é poder trazer para o Brasil um pouco de tecnologia. O resto do mundo mói farinha há 3 mil anos, aqui é um processo que está iniciando agora. É bom porque a gente consegue monitorar direto com a fazenda. Existe uma pequena oscilação de safra a safra com a farinha artesanal e isso é gostoso. A gente vai conversando, se adaptando, e o trabalho do padeiro é esse. Não só torço pelo desenvolvimento desse setor como incentivo.
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No Paraná, estado que mais produz trigo no país, a Moageira Irati percebeu que havia uma demanda por uma farinha superior e se uniu a padeiros e chefs que tinham estudado panificação fora do país para chegar a um produto final que se adequasse às suas necessidades. Deu certo.
A empresa, que tem como principal mercado a venda de matéria-prima para grandes indústrias alimentícias, hoje tem de 5% a 10% do seu volume de vendas vindos do Trigo de Origem, a divisão de farinha premium da marca, vendida diretamente a padarias e restaurantes. O selo foi criado em 2019, e tem crescido ano a ano. Atualmente, tem farinha branca, integral e para viennoiserie (produção de folhados, como o croissant) e desenvolve uma farinha de centeio.
— A gente queria entender o que essa farinha importada para pão artesanal tinha de diferente, então chamamos empresas de sementes, o pessoal da Embrapa, padeiros, produtores e criamos uma farinha para ter a performance que os padeiros necessitavam. Vai desde a plantação do trigo, com variedades específicas, até a armazenagem separada por tipo e trigo e a moagem diferenciada. Não é uma moagem focada em volume. Hoje, na nossa embalagem tem um laudo com porcentagem de proteína e todas as características técnicas da farinha. Também temos uma padaria experimental para fazer as análises técnicas — conta André Machado, diretor comercial do Moinho Irati.
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Em São Paulo, a Martoca Padaria, em Pinheiros, também tem as farinhas nacionais como insumo principal. Marta Garcia, que abriu o estabelecimento há um ano, conta que sempre ouviu que não era possível fazer pão de fermentação natural com farinha nacional, mas diz que hoje o cenário é outro. Ela usa farinhas das brasileiras Irati, Fazenda Vargem e Anaconda, cada uma para um tipo de pão diferente. Farinha importada na padaria de Marta só a de centeio, que vem da França, mas ela diz que está em busca de um produto nacional para substituir a que vem de fora.
— A minha meta é só ter produto nacional. Quando comecei a fazer pão, era preciso fazer adaptações para usar a farinha brasileira, que não aguentava muita hidratação, mas o produto evoluiu muito, e agora não estou fazendo nenhuma concessão para usar a nacional, que hoje está no mesmo nível da importada, da francesa e da italiana — conta a empresária, que ainda destaca outros atrativos como o custo ligeiramente mais baixo do produto brasileiro e o fato de ser mais fresco.
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A máxima de que pão de fermentação natural não combina com farinha nacional vem mesmo caindo no mundo da gastronomia. A afirmação é tratada até como mito por chefs e padeiros ouvidos pelo GLOBO, que ainda citaram outras marcas, como Mirella e Venturelli, entre os fabricantes nacionais com linhas especializadas para panificação artesanal, folhados, confeitaria e massas.
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Eleita recentemente a melhor chef do mundo, Janaína Torres, do Bar da Dona Onça, em São Paulo, também trocou as farinhas francesas e italianas pelas brasileiras. Ela usa produtos da Fazenda Vargem, da Irati e do Moinho Vitória não só para fazer o pão que serve na casa, mas também nas massas.
— Sempre usei farinha italiana. De um ano para cá a coisa mudou e estou tentando pegar tudo o que era importado dentro de um restaurante e substituir por brasileiro. Às vezes, sai um pouco mais caro, mas compensa pela qualidade final, não deixa nada a desejar. Somos um país muito novo, a farinha de trigo não é um produto ancestral brasileiro, então é um processo, e a gente sabe de onde vem, tem contato com o produtor — afirma.
Eduardo Assêncio, superintendente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), explica que o crescimento da produção nacional se deu sobretudo após 2019, pulando de 5,5 milhões de toneladas por ano para o patamar atual de 8 milhões. Segundo ele, o desenvolvimento tecnológico e estudos na área possibilitaram não somente o aumento da produção, mas a melhoria na qualidade do produto:
— À medida que as pessoas estão indo viajar mais, há um maior contato com a panificação europeia, principalmente, e o mercado brasileiro começa a ser mais demandado. Os profissionais aprendiam as técnicas lá fora e tentavam replicar no Brasil, e aí começou a necessidade de ter uma farinha diferente. Os pães de fermentação natural têm características diferenciadas de sabor, aroma, textura e aparência. Então os moinhos começaram a se adaptar, com assistência dos próprios panificadores.