Passava das 21h30 quando o autônomo Renato Azevedo, então com 28 anos, foi morto a tiros ao deixar o lava a jato que mantinha há cerca de uma década a poucos metros de casa, no bairro Pacaembu, no Centro de Queimados, no dia 31 de março de 2005. O lavador de veículos foi uma das 29 vítimas da chacina da Baixada Fluminense, conhecida como um dos episódios mais sangrentos do estado. Duas décadas depois, Silvânia Azevedo, de 46 anos, irmã de Renato, relembra com tristeza dos momentos que se seguiram à perda do irmão e faz questão de exaltar a memória dele.
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Ela, que morava com Renato, conta que já estava se preparando para dormir quando ouviu os disparos. Ao saber que o alvo havia sido seu irmão, rapidamente mudou de roupa e foi até o local da execução.
— Ele tinha terminado de trabalhar e já estava em casa, mas precisou voltar ao lava a jato para trancar o portão. Moramos numa esquina e o espaço dele fica logo na próxima. Ouvimos um barulho, corremos para ver o que era e percebemos que tinha acontecido algo na loja do meu irmão. Quando chegamos lá, ele já estava sem vida. Só sei que desmaiei na hora. Depois, fiquei no local até o corpo ser removido, por volta das 4h. Eu não tinha noção de que aquilo era uma chacina; achei que a única vítima tinha sido ele. Depois que descobri que foram matando pessoas aleatoriamente de Nova Iguaçu a Queimados — narra Silvânia. — É difícil falar, porque a saudade dói tanto quando recordo…Vem tudo na mente de novo. Já se foram 20 anos, e só percebo que o tempo passou ao olhar no espelho, porque, para mim, parece que foi ontem. O tempo para os familiares não passa. É muita tristeza. A gente não vive. Apenas sobrevive.
Silvânia descreve o irmão como alguém que era tímido, reservado, com poucas amizades, que saía de casa basicamente para trabalhar e que fazia praticamente tudo dentro de Queimados.
— Ele gostava muito de fazer churrasco e um peixe na brasa. O aniversário dele era dia 4 de abril. Naquele ano, ele tinha comprado umas carnes com antecedência para comemorar, até que ele falou: “Ah, vamos fazer o churrasco agora. No meu aniversário, faço de novo”. E, infelizmente, o “de novo” nunca chegou. Hoje, quando os vizinhos fazem churrasco, lembro muito dele — lamenta. — Meu pai faleceu quando éramos ainda crianças; e minha mãe se foi durante nossa adolescência. Éramos onze irmãos. Então, ficamos muito unidos. Cuidávamos uns dos outros. Em muitos momentos, era como se eu fosse a mãe do Renato e, em outros, ele fosse meu pai. Nesse período sem ele, a indignação tomou conta de mim. Fica uma sensação de impotência diante de tanto sofrimento. Como o ser humano pode ser tão cruel? Ao longo desse tempo, acabei desenvolvendo problemas no coração e me isolei. Pouco saio de casa.
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A irmã lembra com orgulho a determinação de Renato. Ela diz que, sem os pais, o irmão precisou começar a trabalhar ainda novo. Ele teve um trabalho de carteira assinada numa loja de cosméticos em Nova Iguaçu e, quando foi demitido, comprou os equipamentos para montar o centro de lavagem de veículos.
— Fico pensando que, se ele tivesse vivo, já teria construído família e me dado sobrinhos. O sonho dele e da namorada era se casar e ter filhos. Ele estava construindo uma casa em cima da loja dela. Mas, por causa da maldade do ser humano, não está mais aqui — emociona-se. — Em 20 anos, nada mudou. Na verdade, a violência só piorou. O único alívio é saber que parte dos assassinos foi presa, embora isso não traga ele de volta.
No dia 31 de março de 2005, um grupo de policiais militares saiu de carro e, durante cerca de duas horas, executou 29 pessoas em Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense. Apenas uma pessoa sobreviveu aos ataques. Em uma só rua, nove pessoas foram executadas, entre elas três adolescentes, sem nem saber o que estava acontecendo.
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De acordo com as investigações, a matança teria acontecido em represália à linha dura imposta pelo comandante do 15º BPM (Caxias), coronel Paulo César Lopes. Ele estava há cerca de um ano no batalhão e puniu vários policiais por desvio de conduta, o que teria revoltado a tropa. Dias antes do massacre, oito agentes do mesmo batalhão foram presos, acusados de matar duas pessoas e atirar na cabeça de uma delas no interior do quartel.
O Ministério Público denunciou 11 PMs pelos crimes. Desse total, cinco dos agentes foram levados a júri popular. José Augusto Moreira Felipe, Carlos Jorge Carvalho e Júlio César Amaral de Paula foram condenados a 534 anos de prisão. Marcos Siqueira Costa recebeu pena de 474 anos, e Fabiano Gonçalves Lopes, sete. Quatro policiais foram liberados pela Justiça por falta de provas. Um foi absolvido em decisão de 2009, e outro, que chegou a ser denunciado por formação de quadrilha, morreu em 2006.
No domingo, a Paróquia Sagrada Família, no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, celebrou uma missa especial em homenagem às vítimas. Nesta segunda-feira (31), as atividades se concentram em Queimados, a partir das 16h, na Praça Nossa Senhora da Conceição. Um ato público marcará o dia com a instalação de um memorial temporário, exposição de cartazes e o acendimento de 30 velas — uma para cada vítima e uma em memória coletiva. Haverá ainda a leitura solene dos nomes das 29 pessoas assassinadas, seguida de depoimentos de familiares e participantes, que compartilharão suas experiências e a busca por respostas e reparação.
Às 18h desta segunda, a programação segue para a Câmara Municipal de Queimados, com a solenidade “20 Anos da Chacina da Baixada: O que mudou?”. O evento contará com mesas de debate, que abordarão o histórico do caso, os desafios nas investigações e a conjuntura da segurança pública nos últimos 20 anos.
Além dos eventos presenciais, a ComCausa, entidade que acompanha os familiares desde o ocorrido, encaminhou pedidos de pronunciamentos nas Câmaras Municipais de Queimados e Nova Iguaçu, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e na Câmara dos Deputados, em Brasília. O objetivo é dar visibilidade à pauta e pressionar por discussões mais amplas sobre violência e políticas públicas na Baixada Fluminense.