Aníbal Augusto Sardinha, o multi-instrumentista Garoto, viveu apenas 39 anos (entre 1915 e 1955), mas foi o suficiente para marcar como poucos a música brasileira. Tom Jobim lhe dedicou uma composição (“Garoto”); Luiz Bonfá, também. Raphael Rabello, que fez em 1982 com Radamés Gnattali o disco “Tributo a Garoto”, disse certa vez: “Se não fosse ele, a gente não estaria aqui.” No documentário “Garoto — Vivo sonhando”, de Rafael Veríssimo, João Gilberto afirmou: “Sabe o Messi? Garoto é assim, como o Messi.”
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Nos 70 anos da morte do músico, por ataque cardíaco, — que serão completados no próximo sábado — e perto dos 110 de nascimento (28 de junho), saem dois álbuns em sua homenagem: “Paulo Bellinati Trio toca Garoto” (Borandá) e “Lembrando Garoto” (Biscoito Fino), com Romero Lubambo, Cristovão Bastos e Mauro Senise.
O violonista Bellinati é referência no assunto. Em 1986, lançou o disco “Garoto”, apenas com composições do artista. O trabalho despertou a atenção da editora americana Guitar Solo Publications, que produziu dois livros de partituras e o álbum solo de Bellinati “The guitar works of Garoto” (1991).
A partir de então, passou a receber muito material, como cadernos de partituras manuscritas pelo próprio Garoto e diários, entregues por Denise Sardinha, filha do compositor.
— Ele é precursor de um violão que não existia nos anos 1940, com acordes absurdos, dissonantes, que seriam incorporados na década seguinte por João Gilberto e pelos grandes do violão — afirma Bellinati.
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Embora o violão fosse o instrumento principal do menino-prodígio (daí o apelido), Garoto tocava qualquer outro de cordas: cavaquinho, bandolim, banjo, violão tenor, guitarra, guitarra havaiana, violino etc. Isso contribui para o fascínio em torno dele. Também tocou com Carmen Miranda nos EUA em 1939 e 1940, comandou programas de rádio na Nacional e em outras emissoras, além de ter tido uma carreira de concertista clássico interrompida pela morte precoce.
Há dez anos, Bellinati criou seu trio de violões, hoje com ele (violão de seis cordas de aço), Daniel Murray (seis cordas de náilon) e Swami Jr. (sete cordas de náilon). A formação emula a que Garoto teve com Aymoré e Petit.
— No início, eu fazia sempre a função do Garoto. Depois, fui ficando ousado nos arranjos, incluindo muitos contrapontos, e hoje os violões fazem várias funções — conta Bellinati.
O repertório tem uma composição nunca antes gravada: “Nisso, pelaram a horta!!!” E tem as clássicas “Duas contas”, “Gente humilde”, “Lamentos do morro” e “Tristezas de um violão”.
Elas também estão em “Lembrando Garoto”, o álbum cuja faixa-título é um tema criado por Cristovão para o projeto — com frases melódicas de Garoto inseridas, como ele aponta. Aos 13 anos, ainda no acordeom, o pianista já tocava “Duas contas” em bailes.
— É incrível a capacidade do Garoto de harmonizar. Ele é o precursor da grande harmonia no Brasil — exalta Cristovão, que conta ter composto ao violão suas canções de grande sucesso, como “Resposta ao tempo” (com letra de Aldir Blanc), “Todo o sentimento” e “Tua cantiga” (ambas com Chico Buarque).
Por ser violonista, Lubambo diz tocar obras de Garoto “desde novinho”.
— Ele é muito importante para mim, direta ou indiretamente, porque influenciou quem veio depois, como Tom Jobim e Johnny Alf — ressalta ele, que incluiu no repertório a sua “Theme I”, com evocações de Garoto.
Radicado há 40 anos nos EUA e prestes a se mudar para a Espanha, Lubambo acredita que Garoto sofreu influência do jazz, sendo relevante para isso a sua passagem por cidades americanas após viajar com Carmen. Um exemplo está na composição “Benny Goodman no choro”, que o trio interpreta no álbum — e é a única em que Lubambo usa guitarra.
— A obra do Garoto é muito tocada pelo pessoal do choro, que toca a parte que ele escreveu. É bonito, mas nós temos um som diferente, com muita improvisação — enfatiza.
Senise, que no disco toca flauta, sax soprano, sax alto e piccolo, também destaca a liberdade que eles tiveram para improvisar.
— É a nossa assinatura. Se for só para ler partituras, tem gente que faz melhor do que eu — afirma. — Nós temos o piano econômico do Cristovão, o violão exuberante do Romero e a minha assinatura free, de quem tocou com Egberto (Gismonti), Hermeto (Pascoal), Paulo Moura, Luiz Eça e outros.
Em julho, o trio paulista Caixa Cubo apresentará o show “Garoto: o gênio das cordas” no Recife, em Brasília e em São Paulo. Nas cidades da turnê também será exibido “Garoto — Vivo sonhando”, lançado em 2020. O filme teve como consultor Jorge Mello, biógrafo de Garoto.