Desde que começaram a vir à tona os casos de contaminação por metanol em bebidas alcoólicas, entidades do setor passaram a recomendar o descarte correto das garrafas das bebidas originais compradas por bares e restaurantes de modo a inibir irregularidades. Mas, na prática, esse descarte nem sempre é feito da melhor maneira e donos de estabelecimentos ouvidos pelo GLOBO relatam dificuldades para inviabilizar os vasilhames.
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Na internet, principalmente no marketplace do Facebook ou em sites como OLX, é possível encontrar garrafas vazias de várias bebidas e marcas, de vodca a cerveja, de uísque a gin, geralmente anunciadas como “garrafas para artesanato”, mas geralmente mantendo os rótulos e tampas originais.
— É um problema, porque existe essa indicação de riscar o rótulo, isso eu não faço porque é muita garrafa. O que eu faço é mandar para a coleta seletiva, que vem aqui buscar, mas ela não vem todos os dias. A fabricante não tem um processo para recolher as garrafas vazias — aponta José Valderi, sócio do Bar Amarelinho, que tem três unidades nos bairros do Itaim Bibi e Vila Olímpia.
Em alguns bares, há parcerias com cooperativas de reciclagem para descarte das garrafas e, em outros, os bares dependem da coleta seletiva da prefeitura. Na cidade de São Paulo, a lei prevê que grandes geradores de resíduos precisam contratar uma empresa especializada para a coleta.
O presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte, explica que as garrafas das bebidas alcoólicas mais famosas, sobretudo destilados, são produzidas de forma exclusiva para cada bebida. Por isso, na falsificação, geralmente são usados os recipientes que não foram devidamente inutilizados. Hoje, a reciclagem do setor de produtores de bebidas no Brasil gira em torno de 30%, segundo ele.
— A garrafa do Johnny Walker é só do Johnny Walker, a da Absolut é só dela. Mas o crime compensa. Às vezes, alguém que trabalha num bar, quando uma garrafa esvazia, guarda a garrafa para ganhar um troco a mais. Hoje na indústria existe uma política de logística reversa, programas como Glass is Good, um programa que começou para combater a falsificação de bebida originada no ponto de venda — explica ele, que sugere que a responsabilidade sobre o descarte seja compartilhada entre todo o setor.
Em São Paulo, por exemplo, tem a lei que obriga quem gera mais de 200 litros de resíduos por dia a contratar o próprio coletor. Mas não há garantias de que até mesmo as garrafas descartadas por consumidores, em baixa escala, não possam ser reutilizadas para o crime. Na internet, por exemplo, é possível ver pessoas vendendo uma unidade de garrafa vazia de uísque Johnnie Walker Blue Label por até R$ 300. Para Belmonte, uma solução, além de trabalhar na destruição dessas garrafas na hora do descarte, é a tipificação penal.
— Em uma batida dessas que estão rolando, se o cara tem uma caixa de vodca falsificada, mas tem 100 mil garrafas lá, ele não vai ser penalizado pelas 100 mil garrafas, só pela caixa que foi falsificada. E você acumular uma garrafa proprietária, cujo único fim dela vai ser a falsificação, hoje não é crime. A gente sugeriu uma emenda no projeto que está na Câmara dos Deputados para tipificar isso como um crime.
Alguns proprietários de bares ouvidos pela reportagem afirmam que já receberam propostas de produtores artesanais para guardar as garrafas de vidro, que são caras, para que elas fossem reutilizadas para essas produções menores, mas se recusaram.
Alê Bussab, co-fundador do Trinca, um dos bares de drinks mais premiados de São Paulo, tinha uma empresa que realizava eventos open bar no Rio, há oito anos.
— Uma pessoa tentou me cooptar na época, em um evento, para eu vender cada garrafa vazia para ele. Nunca fizemos isso, porque sabíamos o que a pessoa poderia fazer. O maior cuidado ainda é se livrar das garrafas para ninguém conseguir reciclar para usar em bebida falsa — conta.
De modo geral, não existe um protocolo estabelecido para se desfazer das garrafas, e os estabelecimentos veem suas embalagens de marcas premium se tornarem um ativo valioso para criminosos. Nas redes sociais, em alguns casos há garrafas de cerveja sendo vendidas a R$ 1 o quilo, ou R$ 10 a unidade em casos de bebidas mais premium — como uísque e vodcas mais renomadas. Uma vez nas mãos de criminosos, esses recipientes podem ser preenchidos com líquidos adulterados e possivelmente tóxicos, como o metanol, e voltarem ao mercado para enganar o consumidor.
Rildo Ferreira, diretor comercial da Massfix, empresa especializada em reciclagem de vidros, compra garrafas de cooperativas que coletam reciclagem e destroem essas embalagens. Os cacos, posteriormente, são vendidos para a indústria de produção de vidro.
— Se a população ou os bares e restaurantes fizerem da forma correta, isso coíbe a falsificação de bebidas. Os coletores pegam o lixo, levam para a cooperativa, que fazem a triagem e depois vai para a gente. Nós temos uma usina que faz a separação desse vidro para retirar tampinha, rótulo, canudos, plásticos, e tritura, e isso vira matéria-prima para virar outro vidro. Hoje, muita coisa vai parar no aterro ou na falsificação, isso é descarte incorreto — explica.
A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo (Abrasel-SP) reconhece o perigo e está tentando implementar protocolos para reforçar a segurança. Gabriel Pinheiro, diretor da instituição, afirmou que o ideal seria triturar o vidro das embalagens, mas reconhece que o valor do maquinário está fora da realidade dos bares e restaurantes.
— O falsificador está atrás da embalagem, o grande ativo dele é a embalagem. Portanto, o maior desafio nesse cenário é o descarte. Como o custo de máquinas trituradoras é impraticável para a maioria, cerca de R$ 30 a R$ 40 mil, indicamos uma medida emergencial e simples para inutilizar a garrafa: lixar a garrafa, fazer um risco permanente, para realmente danificar e impedir o falsificador de reaproveitar a embalagem intacta — declarou Pinheiro.
Arthur Rollo, ex-secretário Nacional do Consumidor e especialista em Direito do Consumidor, concorda com a posição da Abrasel. Segundo ele, a facilidade em recolher vasilhames descartados torna o processo de falsificação barato e de baixo risco.
— Se quem falsifica tiver de produzir as embalagens, o processo ficará muito mais caro e mais fácil de ser descoberto, ficando as fábricas clandestinas de vasilhames à vista das autoridades e dos consumidores. A logística reversa, portanto, com o recolhimento das embalagens descartadas, é fundamental para dificultar a falsificação — avalia Rollo.
No entanto, a Federação dos Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp) argumenta que a responsabilidade principal é da indústria que produz as bebidas. Édson Pinto, diretor-executivo da Fhoresp, defende que a logística reversa deveria ser regra do setor de reciclagem e ser executada por quem fabrica o produto, e não pelos estabelecimentos que apenas o revendem.
— Se alguém tem de fazer o recolhimento e a trituração dessas garrafas é a indústria que produz o produto e não os estabelecimentos que o revendem. Os custos envolvidos nesse processo, para 97% de micro e de pequenas empresas, irá encarecer os custos de produção e, portanto, os preços seriam repassados aos consumidores, onerando ainda mais o custo no setor — afirma Pinto.
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A Fhoresp afirmou ainda que a maneira mais eficaz de combater as fraudes é a articulação das forças de segurança na identificação da origem dos grupos criminosos, buscando acabar, na fonte, com a distribuição ilegal de bebidas no país. O advogado Arthur Rollo também aponta falhas crônicas na fiscalização.
Segundo ele, não há qualquer tipo de fiscalização no país quanto ao assunto, com a própria Receita Federal historicamente focada em refrigerantes e cervejas, e deixando os destilados em segundo plano.
— É inaceitável que bares, restaurantes e hotéis adquiram bebidas sem nota fiscal, de vendedores de rua e sem procedência. Quem compra, inclusive em larga escala, para fornecer e servir para o consumidor final, vai ter de ter mais cuidado, exigindo de quem vende a comprovação da origem lícita dos produtos — conclui o ex-Secretário, indicando a necessidade de mudança de hábito tanto do comprador final quanto dos estabelecimentos para coibir o crime.
Na indústria cervejeira, existe a prática da reutilização de garrafas em algumas marcas, como é o caso da Skol. O recolhimento de garrafas de cerveja é feito pelo sistema de logística reversa que busca devolver as embalagens pós-consumo ao ciclo produtivo. No caso das garrafas retornáveis, que podem ser usadas diversas vezes, a indústria se beneficia e o consumidor é incentivado: as garrafas vazias são coletadas em pontos de venda (supermercados e bares), muitas vezes com a oferta de descontos ao consumidor pela devolução do vasilhame. Mas nem todas as fabricantes adotam essa prática.
No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece que a responsabilidade e o pagamento por essa logística reversa são compartilhados. A indústria (fabricantes e distribuidores) é a principal responsável, financiando sistemas de coleta e investindo em equipamentos. O comércio atua como ponto de coleta e, muitas vezes, recebe uma taxa de manuseio da indústria. Já o consumidor participa indiretamente pelo custo embutido no produto ou diretamente, por meio do “depósito retornável”, que é devolvido ao retornar a garrafa.