Na cena musical desde 2019, quando debutou com o EP “Rouff”, a dupla de rappers paulistanas Tasha & Tracie precisou de seis anos de carreira para que enfim tivesse o que era necessário (na visão delas, diga-se) para lançar seu primeiro álbum de estúdio. “Serena & Vênus (lado A)”, que chegou às plataformas no fim de setembro, cria, ao longo das 21 faixas, uma crônica sonora a partir de memórias das irmãs gêmeas. A demora para o lançamento, como as artistas independentes contam ao GLOBO, está relacionada à vontade que tinham de fazer o primeiro disco com certa autonomia — o que agora é possível, já que criaram seu próprio estúdio.
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— Tentamos muitas vezes (lançar um álbum), mas não tínhamos estrutura, era difícil. Trabalhamos como DJs, com moda, com tudo o que surgia para nos sustentarmos… Não tínhamos como pagar pela produção. Tudo o que lançamos antes foi feito “como dava”, no improviso. Mas não queríamos isso (para o primeiro álbum), porque sempre sonhamos em lançá-lo, o idealizamos muito — explica Tracie.
Entre seus trabalhos anteriores, o EP “Diretoria”, de 2021, foi o que chegou mais perto de um álbum. Com sete músicas, era visto pelas irmãs como o “mais coeso” até então.
Criadas no Jardim Peri, bairro periférico da Zona Norte de São Paulo, o trabalho de Tasha e Tracie Okereke sempre se aproxima de questões de periferia, raça e identidade feminina. Temas que seguem em pauta neste primeiro disco. Ao longo das músicas, a dupla narra a trajetória de uma mulher que se apaixona por um bandido, se arrisca no mundo do crime por esse amor, é presa e sente na pele o abandono no sistema prisional.
A relação com a história das irmãs é direta: tanto a mãe brasileira quanto o pai nigeriano (daí o sobrenome Okereke) passaram pelo sistema carcerário no Brasil. A capa do álbum é inspirada nas cartas que a mãe enviava às filhas na época, feitas em caneta azul e cheias de desenhos.
— Sofremos muito quando a nossa mãe foi presa em Salvador, por quase quatro anos. Não conseguíamos e nem podíamos visitá-la. Já o nosso pai, que nem brasileiro é, sempre recebia visitas (quando preso). Vimos as diferenças quando um homem e quando uma mulher são presos — conta Tasha. — Até pensei que o álbum seria mais autobiográfico, que contaria mais sobre esse lado nosso que as pessoas não conheciam, mas ainda vamos trabalhar mais nisso.
A sede de recuperar o atraso levou as rappers, com mais de dois milhões de ouvintes mensais no Spotify, a começarem a trabalhar numa continuação. Como adiantam ao GLOBO (sem entrar em muitos detalhes), o chamado “Lado B” já tem ao menos dez músicas encaminhadas, entre rascunhos e melodias. O próximo lançamento, ainda sem data, deve seguir o mesmo tema do recente, mas com mais vertentes sonoras, como o gênero jamaicano dancehall.
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A ideia, segundo a dupla, é seguir trabalhando em cima do “Lado A” por um tempo, com videoclipes e lyric videos. Lançado em julho, o single “Amina” é o único com um trabalho visual até o momento, com mais de 13 milhões de visualizações no YouTube.
— Os trabalhos visuais trarão imagens que também contam partes da história que as pessoas talvez não tenham entendido — explica Tracie.
Algo que as irmãs reforçam durante a conversa por vídeo com o GLOBO é que elas acreditam em signos e em misticismo. Crença reforçada quando questionadas sobre as diferentes influências sonoras de “Serena & Vênus”, que vão do rap clássico ao house e do funk ao R&B.
— Somos muito geminianas, então fizemos um trabalho que é a nossa cara. Gostamos de misturar coisas diferentes, como estampas e acessórios dourados e prateados… Ou seja, tudo o que as pessoas acham brega e não gostam (risos). Então, quisemos expressar quem somos de maneira versátil — diz Tracie.
Já o lado místico é trabalhado pelas irmãs na faixa “Simpatia”, momento em que a protagonista da história faz um pequeno ritual para atrair o homem por quem se apaixonou. Feita em colaboração com a cantora Liniker e com a rapper Bivolt, as parceiras foram escolhidas por Tasha e Tracie por seu ar “misterioso”.
Apesar de essa não ser a primeira colaboração das gêmeas com Bivolt, é a estreia com Liniker. Elas contam que já conheciam a cantora e que as três pensavam em trabalhar juntas há um tempo.
— Sonhava em fazer uma música com ela. Mas ficamos com receio de mostrar o que tínhamos… Mandamos duas músicas e nos questionamos se estavam “boas o suficiente” para ela. Mas ela se identificou com “Simpatia” e logo começou a compor também — diz Tasha.
Apaixonadas por colaborações — a lista inclui nomes como Ludmilla, Glória Groove e Karol Conká —, as duas têm ainda canções com Dona Kelly, Nath Fischer, Mc Marks, Bitrinho, DJ MF e Cecéu Muniz. Para a continuação do álbum, a dupla já adianta que haverá um novo feat com a rapper Duquesa.
A história artística de Tasha & Tracie começou em 2014, no blog “Expensive $hit”, onde postavam conteúdos de moda relacionados à vida de duas jovens “da quebrada”. Já a atuação na música começou na Batalha do Santa Cruz, na capital paulista. Antes de rimarem em público, as duas também chegaram a se apresentar como DJs.
Com o sucesso do début, porém, vieram os excessos. Elas lembram que chegaram a fazer cerca de 13 shows por mês, sem tempo para grandes ensaios, novas criações ou descanso.
— Viemos do nada, então tínhamos que aproveitar o que aparecia para mudarmos de vida, agarramos tudo o que vinha. Mas a nossa saúde mental ficou horrível e tivemos um bloqueio criativo enorme. Só depois que pudemos desacelerar e nos cuidar, quando já tínhamos uma estrutura — conta Tracie.
— Tem coisas que só curam com terapia. Tivemos que aprender a viver na mídia, com nossos corpos e rostos expostos. Tivemos que aprender a lidar, nos agarramos na espiritualidade também.
Nomes de destaque da atual cena do rap, comumente dominado por figuras masculinas, as irmãs comemoram a ascensão de nomes femininos, mas torcem por cada vez mais reconhecimento.
— Se as mulheres cresceram (no rap) é porque uma deu espaço para a outra. Essa presença faltava e é muito legal ver a qualidade e a preocupação das mulheres com o conteúdo que elas entregam, têm muitas nuances do que esperam do nosso lugar. Mas também queremos que não seja mais enquadrado como “rap feminino” e sim rap. Ninguém fala “rap masculino”, sabe? — indaga Tasha.
* Estagiária sob supervisão de Maurício Xavier

