Não se tem informações sobre o destino de Maria Regina Marcondes Pinto há meio século, quando a brasileira sumiu em Buenos Aires. Bancária, a estudante de Ciências Sociais teria sido presa, segundo relatório do Ministério do Exército argentino, em 8 de abril de 1976 por agentes da repressão local. Ela estaria com Edgardo Enríquez, membro da Comissão Política do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR) chileno.
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Maria Regina faz parte da lista de desaparecidos vítimas da Operação Condor, consórcio de ditaduras do Cone Sul que completa em novembro 50 anos. O tema volta à cena após o anúncio recente, por parte da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), da identificação por meio de análises de impressões digitais do corpo do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior, desaparecido em 18 de março de 1976.
Ex-companheiro de Maria Regina, o cientista político Emir Sader vive a angústia de não ver avanço nas investigações sobre o desaparecimento.
— Provavelmente, ela está entre os corpos atirados de um avião às quartas-feiras e aos sábados nos chamados “voos da morte”. Não sei nada mais que isso. São suposições. Ela está na lista de desaparecidos na Argentina, mas não tenho nenhum canal de comunicação com as autoridades — lamenta Sader, acrescentando que a identificação de Tenório Jr. pode renovar a esperança de outros casos serem esclarecidos. — É completamente angustiante. São desaparecidos. Como disse um ministro da ditadura argentina: nem vivos, nem mortos. Desaparecidos. Os sentimentos que prevalecem são de perda, angústia, tristeza.
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A Operação Condor uniu ditaduras de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. As ações miravam grupos contrários aos regimes militares que chegaram ao poder após golpes de Estado e que mantinham práticas de torturas, mortes e desaparecimento de adversários políticos.
O auge da investida ocorreu na segunda metade dos anos 1970 e se estendeu pelo início da década de 1980. O ponto de partida da operação ocorreu em 25 de novembro de 1975, após uma reunião em Santiago do Chile convocada pelo chefe da polícia secreta chilena na época, Manuel Contreras, e líderes de serviços de inteligência dos demais países do Cone Sul, além da Bolívia.
O procurador da República Ivan Marx, integrante da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), diz que o grupo apura o desaparecimento de ao menos 15 brasileiros na Argentina e mais cinco no Chile. Outros nove argentinos foram dados como desaparecidos na região de Foz do Iguaçu, mas há suspeitas de que tenham sido sequestrados no Brasil e levados para o país natal.
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Para Marx, a identificação do corpo de Tenório Jr. traz esperança às famílias. Ele pondera, entretanto, que o primeiro desafio é localizar os restos mortais dos desaparecidos. A identificação só foi possível após um levantamento da Procuraduría de Crímenes contra la Humanidad sobre ações judiciais arquivadas na província de Buenos Aires, entre 1975 e 1983, envolvendo corpos de indigentes encontrados em vias públicas. O órgão quer saber se os casos estariam ligados à violência do Estado.
A EAAF comparou as impressões digitais de Tenório Jr. com as de um morto por disparos de arma de fogo e encontrado em um terreno baldio em Tigre, no dia 20 de março de 1976. Ele foi enterrado como indigente no Cemitério de Benavídez, em Buenos Aires.
A CEMDP aprovou, no fim do ano passado, a coleta de dados datiloscópicos dos desaparecidos políticos brasileiros em outros países e amostras sanguíneas de seus parentes. A ideia é trocar informações que possibilitem comparações e eventuais descobertas, como no caso do pianista.
— Oficiei às polícias científicas dos estados, pedindo dados e digitais de desaparecidos. Aprovamos no colegiado que seja prioridade a coleta de sangue de parentes e as autorizações para enviarmos a outros países — explica Ivan Marx.
Em nota, Elisa Andrea Tenório Cerqueira, Francisco Tenório Cerqueira Neto e Margarida Maria Tenório Cerqueira — filhos do músico — disseram que a notícia chega com uma “mescla de alívio e tristeza”. A família afirma ter recebido com “surpresa” a notícia da identificação do corpo, após 50 anos de mistério, e cobrou uma nova investigação.
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Integrante do movimento estudantil gaúcho, Jorge Alberto Basso é um dos casos nos quais a CEMDP tem atuado. Nascido na Argentina, ele se naturalizou brasileiro e morou no Rio Grande do Sul. Cursou História na Universidad de Chile e, após o golpe de Estado naquele país em 1973, voltou a viver na Argentina, até desaparecer em 15 de abril de 1976.
Militante da esquerda, ele foi perseguido pelos órgãos da repressão e teria sido preso em um hotel de Buenos Aires. O governo do país vizinho reconheceu seu desaparecimento. Marx conta que a ideia é buscar dados e digitais dele no Rio Grande do Sul ou no Ministério da Justiça, por causa do processo de naturalização, e compará-los aos de indigentes.
Já Sidney Fix Marques dos Santos desapareceu em 15 de fevereiro de 1976, um mês antes de Tenório Jr. Dirigente do Partido Operário Revolucionário Trotskista, ele deixou o curso de Geologia da Universidade de São Paulo (USP) para se dedicar à militância política. Teve os direitos políticos cassados em 1967 e passou a atuar na clandestinidade. Sidney Fix e a mulher se exilaram em Buenos Aires, onde ele desapareceu, aos 36 anos.
Irmão mais novo do militante, Paulo Fix diz que a família tem convicção de que Sidney foi vítima da Operação Condor. Ouviram três versões: que ele teria sido lançado num dos “voos da morte”, queimado vivo em pneus ou morto no dia seguinte à sua captura. Paulo cita como evidência declarações do torturador Claudio Vallejos, que mencionou em entrevistas o envolvimento de militares brasileiros na morte do militante:
— No começo tivemos a ilusão de localizá-lo vivo. Após uns dez anos da captura, minha mãe avisou à família que havia perdido a esperança.
Professora de Relações Internacionais das Américas na University College London, Francesca Lessa é autora do livro “Os julgamentos do Condor: A coordenação repressiva e os crimes contra a humanidade na América do Sul”. Embora o início oficial da operação só tenha ocorrido em novembro de 1975, Lessa destaca que, já em 1969, brasileiros haviam sido alvo da repressão no Uruguai, na Argentina e no Chile. Em 1992, 700 mil documentos foram descobertos numa delegacia de polícia em Assunção, com detalhes sobre atividades da polícia secreta.
Já Samantha Quadrat, professora de História da América Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), opina que, para entender a Operação Condor, é preciso analisar o contexto de cada país. Enquanto o Brasil encaminhava a transição “lenta, gradual e segura” à democracia, Chile e Uruguai tinham regimes autocráticos recém-instalados e a repressão “no auge”, e a Argentina estava prestes a viver um golpe:
— No Brasil, estávamos na transição, e a dupla informação e repressão fez com que o país tivesse uma participação não tão central como os demais. Além disso, gosto de pensar que era um plano e não uma operação única. Reuniu um conjunto de ações em que o nome Condor não aparece nos documentos. Mas o Brasil foi um participante através dos cursos de formação para agentes e nos casos de desaparecimentos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no país, mesmo já na transição.
A especialista aponta que ainda há lacunas a serem apuradas sobre a operação, como o financiamento da repressão para além das verbas estatais e a ação de países como Estados Unidos e França.
Professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) e membro do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da instituição, Martina Sporh frisa que o grande impulso às descobertas sobre a Operação Condor se deu com o fim do sigilo de documentos do Paraguai, nos anos 2000. Desde então, confirmou-se a existência de uma conexão internacional entre países de ditaduras do Cone Sul.
— Há documentos do Paraguai sobre reuniões com liderança do ditador Alfredo Stroessner. Os principais cabeças foram ele e o ditador Augusto Pinochet, do Chile. A repressão chilena também foi central para construir a operação, até porque começou em 1973; era outro momento em relação ao nosso. Brasil e Paraguai já tinham estrutura sistemática para rechaçar a subversão — detalha Sporh.