Um pelotão de brasileiros está na linha de frente no atendimento médico, na assistência social e na preparação de refeições para pessoas em situação de rua. Lorena Sampaio é médica. Faz parte de uma das 15 equipes do Consultório na Rua no Rio de Janeiro, que percorre a cidade prestando assistência. São 120 profissionais de saúde em média nessa atenção primária na cidade. No Brasil, são 290 equipes, com cerca de 2.300 pessoas. Numa das visitas na Cinelândia foi recebida com um abraço e o cumprimento: “chegou minha doutora”, dito por Michael Virgílio de Araújo que sofre com glaucoma.
— O Consultório na Rua é a ponta da ponta do atendimento de saúde. A história que mais me marcou aconteceu no Recife, quando ainda era estudante. Encontrei uma paciente psiquiátrica, gestante. Depois que saí do estágio, tive muita curiosidade de saber mais notícias dela. Sabia que estava em situação de rua. No estágio seguinte, estava num hospital psiquiátrico e a reencontrei. Estava em mutismo e sequer sabia que tinha sido mãe recentemente — conta Lorena.
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Ela diz que o episódio a deixou com várias interrogações de como essa mulher poderia ter sido mais bem atendida se tivesse um profissional olhando o território onde ela ficava, fizesse busca ativa para garantir o cuidado pós-parto.
— Eu percebo como a gente faz diferença no setor de saúde, pelo vínculo que se cria, fazemos pré-natal na rua, exames. É uma alegria chegar e já ver alguns rostos conhecidos, que te abraçam, te tratam com muito carinho.
A equipe conta com uma rede de apoio. Jornaleiros, atendentes de bares e restaurantes guardam os remédios de uso contínuo e tomam conta.
O subsecretário municipal de Atenção Primária do Rio, Renato Cony, diz que a meta é chegar a 20 equipes, compostas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, agentes sociais e psicólogo.
— Esse território (Centro e arredores) tem nove clínicas da família, as redes de emergência e os CAPS (Centros de atenção psicossocial). Trabalhamos com as unidades básicas de saúde, para dar apoio a casos mais complexos e (com o objetivo de) que eles se responsabilizem com a gente nesse cuidado.
A secretária de Atenção Primária à Saúde, Ana Luiza Caldas, do Ministério da Saúde, diz que a meta é alcançar 400 equipes no país até 2027. Atualmente, são 290 em 195 municípios. São transferidos R$ 36 mil por mês para manter cada equipe. Com aporte do estado chega a R$ 44 mil:
— O papel da equipe é fazer uma busca ativa, em vez de aguardar que (as pessoas) procurem o serviço. É uma população marginalizada e negligenciada — diz Ana Luiza.
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Talita Reis é assistente social da Prefeitura do Rio no Albergue Herbert de Souza — Betinho, no Centro da cidade. Ela ajuda a conseguir emprego, prepara o currículo, oferece roupas para eles se apresentarem nas entrevistas e encontrarem uma vaga. Ela conta como as pessoas se emocionam ao saber que conseguiram um posto.
— Quando a gente vê que alguém consegue, esse um vai mudar mais um e esse um vai mudar mais um e, aos pouquinhos, a gente vai criando algo construtivo e permanente. Porque não adianta a gente mudar e daqui a pouco ele voltar para o sistema de novo.

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Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social, a principal política hoje é aumentar o número de acolhimentos, a porta de entrada para o atendimento social.
— Em maio deste ano, aumentamos em 250 vagas o quadro permanente (nos abrigos da cidade do Rio) e criamos 160 temporárias. A maior tarefa é o convencimento que a rua não é a melhor opção. Ao ingressar nos nossos abrigos, há um atendimento multidisciplinar — afirma Marta Rocha, secretária municipal de Assistência Social.
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Ela diz que o município está participando do programa Ruas Visíveis do governo federal e da Moradia Cidadã.
— O plano de trabalho já foi aprovado, com possibilidade de beneficiar 50 famílias nesse projeto Moradia Cidadã. Não é só entregar casa mobiliada. A pessoa vai ter acompanhamento da assistência social para que possa se fortalecer, buscar um emprego.
Segundo a secretária, há tratativas com a Secretaria Municipal de Habitação do Rio, para participação nos projetos do Minha Casa, Minha Vida.
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No Brasil, há 1.088 centros de acolhimento, segundo o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), com capacidade para atender 80 mil pessoas para uma população em situação de rua inscrita no Cadastro Único de cerca de 350 mil. Flexibilizar os critérios de entrada nos centros de acolhimento é uma das medidas que o ministério recomenda.
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— Tem que pegar ficha, distribuída às 18 horas, mas coleta de material reciclado é feita à noite, com festividades que vão até altas horas, e aí não se consegue entrar no abrigo. Um ponto fundamental na política é ter baixa exigência. Em muitos municípios, há vários critérios impeditivos de acesso ao abrigo. Estar embriagado, não ter documentação. Estamos orientando para os critérios serem mais compatíveis com a realidade — diz Regis Spíndola, diretor de proteção social especial do Ministério do Desenvolvimento Social.
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O atendimento à população em situação de rua conta ainda com voluntários. Pessoas e organizações distribuem café da manhã, almoço, lanches e jantar em vários pontos da cidade. Fátima Maria Pereira é uma delas. É cozinheira e sai às cerca de 4h de São Gonçalo para chegar às 6h40 no Centro do Rio e preparar mais de 200 refeições entregues duas vezes por semana na Lapa. Ela é uma das fundadoras da cozinha solidária do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) na cidade.
— Há 11 anos, em uma ocupação em São Gonçalo, via gente com fome. Junto com umas vizinhas, fizemos macarrão com salsicha para distribuir. Tenho orgulho, mas é uma luta que não termina.
Thaysa Gomes de Almeida é coordenadora da Casa Franciscana, que fica nas imediações da Central do Brasil e distribui mais de 350 refeições por dia. Ela diz que a demanda é o dobro. As pessoas começam a chegar para pegar a ficha do almoço perto de 8h e a refeição é servida num refeitório perto de meio-dia.
— É uma população que não está acostumada a ser vista. Há pessoas que fazem parte da terceira geração em situação de rua, nunca viveram em casas.