A fábula da galinha dos ovos de ouro é encontrada em diversas versões, de Esopo a La Fontaine, de Monteiro Lobato a Millôr Fernandes, esta no formato de paródia. Um fazendeiro tinha uma galinha que punha um ovo de ouro por semana. Apressado, resolveu trapacear. Abriu a galinha para retirar a barra de ouro que existia por lá. Mas a ave era como qualquer outra, sem nada do metal em suas entranhas. A ganância fez o fazendeiro matar sua galinha dos ovos de ouro.
- Guerra comercial: Trump anuncia taxação de 10% sobre produtos do Brasil, menor índice do ‘tarifaço’
Compreendo o presidente Lula, que quer encontrar o pilantra, nas palavras dele, que fez aumentar o preço do ovo. Darei uma pista. Antes preciso descrever outros fenômenos, mas o pilantra é o mesmo.
- Foi para a Argentina: Moraes determina prisão preventiva de Léo Índio
Nyangai é uma ilha habitada de Serra Leoa. A elevação do nível do mar a dividiu em duas. Em fevereiro, o lado maior da ilha, que tinha 700 metros há dez anos, não passava da lateral de um campo de futebol; e desaparecerá em pouco tempo. A África, que em 400 anos emitiu 3% do total de gases de efeito estufa (GEEs), será tão ou mais afetada pelas mudanças no clima quanto China, Estados Unidos, União Europeia e Índia, que emitem mais de 50% dos GEEs.
Recentemente, no jornal Valor Econômico (“Quatro Argentinas a menos de energia”), mostrei que neste século encolheu drasticamente o total de energia armazenada nos reservatórios das hidrelétricas (UHEs). O problema é ainda maior quando é avaliada a energia natural afluente, ou afluência — a água que efetivamente chega às UHEs.
Nas UHEs do Sudeste/Centro-Oeste (SE/CO), nota-se que, no período ainda favorável, como de 2000 a 2012, a afluência, em cinco anos, superou a média de longo prazo, métrica aplicada desde 1933. Em seis anos, ficou entre 88% e 95% dessa média. O pior ano foi 2001, quando a escassez de água resultou num racionamento de 20%, o maior da História.
No horizonte entre 2012 e 2024, quando cresceu mais ainda a emissão de GEEs e foi mais íngreme a elevação da temperatura do planeta, o quadro é perturbador. Nesse período, apenas em 2013 a afluência foi maior que o histórico e, em três anos (2014, 2021 e 2024), não passou de 67%. Um detalhe chocante, mas que não surpreende: no SE/CO, o pior ano de afluência do ciclo de 2000 a 2011 foi melhor que a média do ciclo entre 2012 e 2024.
No Nordeste (NE), o quadro é também inquietante. Apenas em 2004 o volume de água que chegou às UHEs foi maior que a média de oito décadas. Em seis anos, a média foi inferior a 50% do histórico e, em 2017, o pior dos piores, mal chegou a 30%. Anote isso: a média das médias das afluências do ciclo entre 2012 e 2024 é inferior a 60% do histórico, como se a capacidade de produção das UHEs fosse mais de 30 pontos percentuais menor do que deveria ser.
Resultado: entre 2012 e 2024, a contração das afluências no SE/CO e no NE, onde está quase 90% da capacidade de armazenamento, corresponde a três anos de consumo de eletricidade dos nossos parceiros do Mercosul — Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai — juntos. Deixamos vazar por um “ralo” de dimensões planetárias o equivalente R$ 170 bilhões, ou R$ 13 bilhões ao ano, explicados pelas mudanças no clima. É como se jogássemos fora 20 mil toneladas de barras de ouro.
Retorno ao preço do ovo. De dois feirantes, de Brasília e de Florianópolis, obtive informações consistentes para alta no preço. Para um deles, a taxa de câmbio fez subir o custo dos insumos, e a demanda teve leve crescimento. Os dois, porém, são unânimes quanto aos efeitos do clima. Num ambiente de calor extremo, as galinhas comem menos e bebem mais água, o que os veterinários e zoologistas chamam de estresse térmico. Além de reduzir a produtividade, torna as aves mais vulneráveis a doenças.
Mas o clima não é o pilantra. O clima já foi uma galinha dos ovos de ouro, mas foi trapaceado. O aumento do preço do ovo é determinado pelo universo de sabotadores que, ao desprezar as metas de emissão de GEEs, fez elevar a temperatura da Terra, o nível do mar e reduzir o volume de água para UHEs. A trapaça fez definhar nossa galinha dos ovos de ouro. Tudo isso sairá muito caro, e os efeitos serão repartidos de forma desigual, como no caso de Serra Leoa.
*Edvaldo Santana, doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina, foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica