Após forte reação da sociedade civil, que foi às ruas no último domingo contra decisões recentes do Congresso, o Senado rejeitou e arquivou ontem a chamada PEC da Blindagem, que previa um conjunto de alterações na Constituição para proteger parlamentares de ações na Justiça. Aprovado na semana passada pela Câmara, o texto foi enterrado por decisão unânime da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.
A Proposta de Emenda à Constituição havia tramitado de forma acelerada na Câmara, patrocinada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB). Foi aprovada por 353 a 134 em primeiro turno em um acordo entre partidos do Centrão, oposição e com apoio de partidos da base do governo. Siglas como PL e Republicanos votaram de forma unânime. A manobra teve forte rejeição nas redes sociais, ampliada com a aprovação da urgência do projeto de anistia a golpistas no dia seguinte, o que desencadeou o movimento que levou a população às ruas nas 27 capitais no último fim de semana.
Com a tramitação a jato imprimida pelos deputados, mas sem o aval de líderes do Senado, a derrota por 27 a 0 causou um estremecimento entre as Casas (leia mais na página 6). Levantamento do GLOBO divulgado no último domingo já mostrava que não havia apoio suficiente no Senado.
Com a decisão da CCJ, coube ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), oficializar em plenário o arquivamento. Entre senadores, foi criada a expectativa de que, mesmo derrotada na comissão, a PEC pudesse ser analisada em plenário. Mas o regimento proíbe tal manobra quando a rejeição no colegiado é unânime — foram 27 votos a zero.
— Parlamentares encararam o tema com serenidade, altivez e coragem. Logo este tema, que tem naturalmente mobilizado a sociedade brasileira, mas, sobretudo, o Parlamento. É o que nos cabe — disse Alcolumbre.
Em entrevista na sede da ONU, em Nova York, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o arquivamento “era previsível”.
— (A proposta era) desnecessária, provocativa. E passou um sinal péssimo para a sociedade brasileira. O único jeito de as pessoas serem protegidas é as pessoas não fazerem coisas erradas. Você não pode querer uma proteção que a sociedade não tem. Por que você quer essa proteção? Você está com medo do quê? — questionou o presidente.
A PEC estabelecia que deputados e senadores só poderiam responder a processos criminais com autorização prévia de suas respectivas Casas Legislativas, em votação secreta.
O texto previa ainda que parlamentares presos em flagrante de crime inafiançável tivessem seus casos submetidos em até 24 horas ao crivo do plenário, que decidiria se manteria ou não a prisão também em escrutínio secreto.
Críticos apontavam a medida como um retrocesso de mais de duas décadas, já que a prerrogativa de aval legislativo para ações contra congressistas havia sido derrubada em 2001.
Ao defender a rejeição da proposta, o relator, Alessandro Vieira (MDB-SE), lembrou que, entre esta data e 1988, quando foi promulgada a Constituição, quase 300 pedidos de investigação contra congressistas não prosperaram, e apenas um avançou. Para o relator, caso aprovada, a proposta permitiria “a integração ainda maior do crime organizado armado dentro do Parlamento”:
— É uma PEC desenhada para proteger bandido. Foi testada no passado e levou a centenas de pedidos de investigação arquivados sem análise de mérito. O interesse público exige rejeição.
O senador também criticou a apresentação de emendas, como a apresentada pelo senador Sergio Moro (União-PR), que buscava restringir a blindagem a crimes contra a honra. Também atacou a forma de tramitação na Câmara. Na Casa vizinha, os deputados chegaram a reincluir um trecho que previa votação secreta após derrota na análise de um “destaque”, que suprimia essa parte da PEC.
— Não há nada na PEC aproveitável. O voto secreto é quase uma cereja do bolo, porque foi retirado, com destaque, e depois reintegrado numa manobra antirregimental. Mas o conjunto da obra é absolutamente inviável. Não dá para pegar um pedaço dela e dizer: isso aqui é melhorzinho, isso é pior — afirmou.
Moro havia apresentado emenda para restringir o alcance da proposta, mas, diante do cenário de rejeição, também votou contra.
— A Constituição de 88 era clara ao estabelecer que parlamentares são invioláveis por seus votos, palavras e opinião. Não é um privilégio, é um instrumento fundamental para que o parlamentar represente seu eleitor sem medo de ser processado, seja civil ou criminalmente — disse o senador.
A rejeição se deu uma semana após a Câmara aprovar a PEC com uma votação expressiva: 353 votos a favor e 134 contrários. Com o avanço das investigações sobre o mau uso de emendas por dezenas de parlamentares, o assunto ganhou tração.
Em 2021, o então presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) chegou a aprovar a urgência do texto, na esteira da prisão de Daniel Silveira. Mas não houve ambiente entre deputados para avançar com o tema. Desde então já havia resistência no Senado à proposta.
Ontem, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) reforçou o apelo para que a proposta fosse arquivada sem margem para sobrevida:
— Há um clamor grande para que essa PEC seja enterrada. Peço que o relatório seja acatado por aclamação.
O senador Jorge Seif (PL-SC), que chegou a apresentar voto separado, retirou o texto antes da votação. Ainda assim, aproveitou para pedir que outra proposta fosse apreciada:
— Eu retiro meu voto em separado, porém faço um apelo para que o senhor (presidente da CCJ) paute a nossa PEC 5/2024, que reforça o artigo 53 da Constituição, garantindo que nenhum parlamentar pode ser processado ou censurado por suas palavras e votos.
Já o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) criticou o que chamou de “distorções e arbitrariedades” cometidas por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente em relação a processos envolvendo parlamentares da oposição.