Durante nove meses, Nana Caymmi resistiu. Enfrentou uma sucessão de complicações médicas – arritmia cardíaca, infecções hospitalares, paralisia renal, sepse – e passou por cateterismo, traqueostomia e uma rotina exaustiva de analgesia. Mesmo assim, segundo os familiares, a filha de Dorival Caymmi manteve-se lúcida, com bom-humor, gosto pela polêmica e a obstinação que sempre marcou sua vida e sua arte.
Uma das mais emblemáticas vozes da MPB, a artista morreu na última quinta-feira (1º), às 19h10, aos 84 anos, de falência múltipla dos órgãos, na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro.
Nana havia sido internada pela primeira vez, ainda em julho de 2024, com um quadro de arritmia cardíaca. Recebeu um marca-passo, teve alta, mas voltou em agosto com dores no peito. Um novo cateterismo foi necessário, assim como a traqueostomia. Ela não sairia mais da UTI.
— Tenho um amigo produtor que disse assim: pô, eu com 15 dias já estava pedindo as contas — conta o irmão Danilo Caymmi, cantor e compositor. — Mas ela com nove meses ainda estava lá, forte. E numa UTI, que não tem janela, não tem sol, toda hora aquele barulho de aparelho.
Danilo conta que ela esteve sempre muito lúcida, mas sofrendo com as dores:
— Tem sempre aquele negócio, você cura aqui e já tem outro problema ali. Ela estava sofrendo muito, mas, como todas as mulheres da família, era muito forte. Ela só gravava o que queria, nunca fez uma concessão na vida dela.
Pouco antes da morte de Nana, Danilo havia informado ao GLOBO que a cantora havia sofrido uma “overdose de opioides” no dia do aniversário de 84 anos dela, comemorado no último dia 29 de abril. Filha mais velha de Nana, Stella Caymmi conta de outra forma.
— Overdose parece coisa de roqueiro, né? — diz ela. — O que ela teve foi uma impregnação de analgésico. Um deles era opioide, mas tinha coisas como dipirona.
Stella, que esteve perto da mãe durante toda a internação, guardou mensagens trocadas com médicos. Ela relata que, apesar de os primeiros meses terem sido difíceis, houve um período de esperança e relativa calmaria.
— Com internação prolongada, vem infecção, o corpo perde imunidade… — explica. — Mas depois ela teve uma curva de melhora muito grande. Tanto que me assustei quando veio o quadro de sepse, porque tudo indicava que ela já estava se curando.
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Futebol, séries e crochê
Mesmo no hospital, Nana manteve o bom humor, conta a filha. Assistiu todas as temporadas da série “A Diplomata”, acompanhou mesas-redondas esportivas e seguia fanática por futebol.
Apesar de gostar do Barcelona de Lionel Messi, dizia que gostaria de ter sido mãe do Ronaldinho Gaúcho. Nana era Flamengo no Brasil, mas preferia acompanhar o futebol europeu (segundo uma fonte próxima, era por achar “os jogadores mais bonitos”).
Stella lembra que a mãe também era uma devoradora de livros – e seguiu no hospital.
— Ela adorou os últimos livros de Ruy Castro, o sobre Tom Jobim (“O ouvidor do Brasil”) e o “Metrópole à beira-mar”. Ela ligava para o Ruy para conversar sobre o livro e os dois se tornaram amigos por telefone.
Filha de Danilo, a sobrinha Alice Caymmi lembra de outra atividade que Nana manteve no hospital: o crochê.
— Ela seguia sendo Nana no seu dia a dia, fazendo as coisas que gostava — diz Alice. — A minha tia era uma pessoa muito simples, com alegrias muito simples do dia a dia. Vivia de uma maneira muito muito alegre, cantava sempre.
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‘Tudo que precisava falar’
As posições políticas de Nana Caymmi, uma apoiadora de Jair Bolsonaro no início de governo e conhecida pela acidez nos comentários, incomodaram muito sua sobrinha. Mas, antes disso, ela ficou mais machucada pelas críticas que a veterana fez ao seu trabalho como cantora.
Em entrevista à Folha de São Paulo em 2019, Nana se mostrou descontente com o rumo da carreira de Alice: “Eu tinha muita esperança de que ela fosse para o meu caminho. Achei que Alice ia dar mel, mas não deu”. A sobrinha, por sua vez, usou as redes sociais para contar que passou por muita “rejeição” e nunca pediu a aprovação de ninguém.
Mas o tempo passou e Alice fez as pazes com a tia. Visitava-a no hospital, conversava com ela via videochamada, falando “tudo que precisava falar”.
— E foi muito importante ter umas últimas conversas com ela — diz. — Falei que eu a amava muito, que estava tudo bem. Não foi uma “reconciliação”, porque nunca foi uma briga de verdade. Na nossa família é assim. Senti uma mistura de sentimentos, porque ela não é só a minha tia amada, ela é também a maior cantora do Brasil.
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‘Entendimento superficial’ de política
Alice lembra que o modo “sem filtro” de Nana é pré-rede social – a tia não se preocupava com “cancelamento”. Os conhecidos já estavam acostumados, segundo ela. Em 2019, por exemplo, Nana causou rebuliço com uma entrevista em que criticava de forma grosseira as preferências políticas de Gilberto Gil, Chico Buarque e ex-colegas de palco da MPB (“Tudo chupador de pau de Lula”, disse a cantora à época). Nenhum dos citados se revoltou.
— Eles responderam: “Ah, é a Nana!” — lembra Alice. — Estavam acostumados.
Gil é um caso à parte. O baiano foi casado com Nana entre 1967 e 1969, e conhecia bem o temperamento da ex-mulher. Na época, ele botou panos quentes afirmando que era da personalidade de Nana ser “desbocada em todos os sentidos”. Ao GLOBO, o cantor afirmou, durante o velório, que havia retomado o contato com ela nos últimos anos. E que ambos se davam muito bem.
— (A fala que ela deu em 2019) era ela com a eletricidade permanente dela — ponderou o imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), ao citar o caso. — Nana foi uma pessoa extraordinária.
Segundo Danilo Caymmi, Nana não tinha um entendimento “muito superficial” do que falava sobre política.
— Eu acho que ela pagou por isso — lamenta o irmão. — Deu um problema para a família, mas a gente conseguiu superar bem. Acho que ela não esperava que (as coisas polêmicas) que dizia teriam essa dimensão. Depois ela assimilou e viu que o negócio estava sério. E aí sentiu.
Nascida Dinahir Tostes Caymmi, em 29 de abril de 1941, no Rio de Janeiro, Nana foi a primogênita do casal formando por Dorival Caymmi e pela cantora Stella Maris. Na escadinha dos filhos, ela foi seguida por Dori em 1943 e por Danilo em 1948. Com os três, Dorival gravou em 1964 o LP dedicado à obra de Tom Jobim “Caymmi visita Tom e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo”.
Nana abriu o caminho musical na adolescência, estreando como cantora em disco do pai, na faixa “Acalanto”, que Dorival compôs em sua homenagem, quando ela ainda era criança. A confiança que ele teve em mim nesse dia foi fundamental para a minha carreira, eu nunca havia pensado em ser cantora profissional. Mas tudo correu bem”, disse Nana, mais tarde.