Um integrante da máfia italiana ‘Ndrangheta estava prestes a pagar por um carregamento de cocaína a traficantes brasileiros quando o negócio foi cancelado. Motivo: a organização criminosa brasileira não aceitou o pagamento em bitcoins, pois não sabia como administrar transações em criptomoedas. A negociação foi registrada em uma interceptação telefônica autorizada pela Justiça durante a operação policial europeia conhecida como ‘Ndrangheta Connection, ou Pollino, realizada simultaneamente na Holanda, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo e Itália.
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O fracasso da negociação ocorreu em 2018. Atualmente, essa barreira já foi superada, afirma Antonio Nicaso, especialista em máfias e organizações criminosas e professor da Queen’s University, de Ontário, no Canadá. No Rio para participar da 12ª Semana Internacional da Fundação Magna Grécia, Nicaso abordará o uso de tecnologias digitais pelas organizações criminosas, especialmente máfias, e a necessidade de cooperação entre Brasil e Itália. Segundo ele, o Primeiro Comando da Capital (PCC) é hoje um dos grupos criminosos mais preparados do mundo para lidar com as novas oportunidades financeiras. Era justamente o PCC a facção brasileira que negociava drogas com a ‘Ndrangheta há sete anos.
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— Alguns anos depois (das tratativas na venda da cocaína com a máfia italiana), a mesma organização demonstrou plena consciência das oportunidades oferecidas pelas criptomoedas. Hoje, o PCC é uma das organizações mais equipadas para investir ou mesmo minerar criptomoedas — disse o especialista ao blog Segredos do Crime.
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Nicaso também ressaltou a importância de os países se empenharem no combate aos chamados cibercrimes — delitos cometidos no ambiente virtual, como fraudes, roubos de dados, ataques a sistemas e outros atos ilícitos que envolvem tecnologia:
— Todos devem levar em consideração essas oportunidades e desenvolver as habilidades tecnológicas e de TI necessárias para combater organizações criminosas cada vez mais avançadas também nessa frente — enfatizou.
A seguir, veja abaixo os principais trechos a entrevista exclusiva para o Blog Segredos do Crime com o professor, que também é diretor do Cybrec, laboratório de cibercrime e segurança cibernética, criado pela Fundação Magna Grécia, em Roma, que o convidou:
Não é novidade que a Itália e o Brasil possuem características semelhantes na atuação de suas organizações criminosas. Pode mencionar algumas dessas semelhanças?
Organizações criminosas como PCC, CV, ‘Ndrangheta e Camorra compartilham símbolos, mitos, rituais e a capacidade de construir sistemas de poder com redes de profissionais de colarinho branco de confiança. Suas origens estão na prisão. Mizael Aparecido da Silva, um dos fundadores do PCC, inspirou-se na Camorra para redigir seu primeiro estatuto, após contato com os irmãos Torsi, da Nuova Famiglia, em 1990. A influência da Camorra também aparece nos rituais macabros: em 1982, os irmãos Torsi participaram do assassinato de Giacomo Frattini, cuja cabeça, coração e mãos foram encontrados em sacos plásticos, e o corpo, em um lençol ensanguentado. O mito fundador do PCC conta que, em 1993, no presídio de Taubaté, a facção foi criada por detentos ligados a um time de futebol, o Primeiro Comando da Capital. Após matarem dois membros do grupo rival e deixarem suas cabeças no campo, proclamaram o domínio da prisão. Tanto o CV quanto o PCC seguem códigos de conduta semelhantes aos das máfias italianas — como a “lei do morro” e as regras autoimpostas da facção paulista.
Quais são os principais desafios do crime organizado híbrido? O senhor pode explicar o que significa essa modalidade criminosa?
Algumas organizações criminosas estão se tornando cada vez mais híbridas, operando tanto on-line quanto off-line, adaptando-se às novas tecnologias e explorando as oportunidades que elas oferecem. Hoje, além de utilizar sistemas de comunicação criptografados, essas organizações investem em criptomoedas. Os esforços de combate devem considerar essas oportunidades e desenvolver habilidades tecnológicas e de TI necessárias para enfrentar organizações criminosas cada vez mais avançadas também nesse aspecto.
O IA para o bem e para o mal
Assim como a inteligência artificial (IA) e outras ferramentas tecnológicas auxiliam especialistas na detecção de fraudes, esses mesmos mecanismos são utilizados por facções e máfias. Como impedir o avanço desses tipos de crimes?
Para enfrentar esses desafios, é necessário atualizar os protocolos investigativos e contratar engenheiros de computação, utilizando algoritmos e IA nas investigações financeiras. Atualmente, é possível criar redes criminosas autônomas com IA, capazes de identificar setores de investimento e rastrear as rotas mais seguras para o transporte de drogas e outras mercadorias ilícitas. Deve-se levar em conta que o DNA do crime organizado está mudando rapidamente, adaptando-se a um mundo em constante movimento. O domínio on-line tornou-se um aspecto essencial e onipresente da vida cotidiana, e seu papel na facilitação do crime organizado continuará a crescer.
Como as facções criminosas do Rio de Janeiro e de São Paulo utilizam a tecnologia a seu favor?
Algumas investigações confirmam a capacidade do PCC de investir em criptomoedas e se equipar com ferramentas para se comunicar com mais segurança. Acredito que a situação do Comando Vermelho (CV) não seja muito diferente, embora não haja provas jurídicas na frente italiana que o estabeleçam. É importante notar que o CV é a organização mais antiga do país e, apesar das dificuldades enfrentadas desde que suas relações com o PCC se deterioraram, continua sendo uma organização poderosa, capaz de modernizar suas estratégias.
Papel da facções brasileiras fora do país
Qual é o papel do PCC e do CV nos crimes cibernéticos? O que se sabe sobre suas influências fora do Brasil?
Ambas as facções têm a capacidade de recrutar indivíduos qualificados, capazes de explorar a dark web. Nacionalmente, o PCC está presente em todos os 26 estados brasileiros e em pelo menos 23 países fora do Brasil, incluindo a Itália, utilizando o porto de Santos para gerenciar os embarques destinados à Europa. Em 2021, estimava-se que cerca de 1.545 membros do PCC viviam no exterior. O CV teve conexões com o cartel de Cáli, bem como com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Graças a Fernandinho Beira-Mar (o traficante Luiz Fernando da Costa), o CV começou a se expandir para outros estados brasileiros e assumiu o controle da rota da cocaína que passa pelo Paraguai e chega ao Brasil.
Como têm sido as conversas entre as autoridades brasileiras e italianas para unir forças no combate aos crimes cibernéticos praticados por essas organizações criminosas e máfias?
A cooperação entre os dois países é excelente e, com base nisso, só tende a melhorar. Por isso, estamos participando desses debates.
Debates sobre cibercrimes
A 12ª Semana Internacional da Fundação Magna Grécia ocorre no Istituto Italiano di Cultura di Rio, no Centro do Rio, com representantes dos setores público e privado da Itália e do Brasil. O evento termina nesta quinta-feira, com palestras de 10h às 13h. Além de Nicaso, estarão presentes Michele Carbone, diretor da Direção de Investigação Antimáfia; Nicola Gratteri, promotor público da Corte de Nápoles; Bruno Frattasi, diretor-geral da Agência Nacional de Cibersegurança (ACN); o secretário de Segurança Pública do Rio, Victor Santos; Antenor Madruga, membro do Conselho de Autorregulação da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), entre outros.