Sem deixar de lado o humor, Luis Fernando Verissimo também usava suas crônicas para falar de coisa séria. Num texto de 2008, o escritor gaúcho adiantou no título a sugestão que naquela época já se tornara indispensável aos que tentavam desvendar os rumos do mundo neste século: “Pense na China”. O tom irônico não ocultava o incômodo que o acompanhava ao refletir sobre a ascensão do país asiático.
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“É impossível pensar na China e continuar, mesmo sem fingimento, despreocupado”, escreveu Verissimo, ecoando a sensação de muitos diante do crescente poderio chinês. Declaradamente de esquerda, não consta que o escritor fosse acometido de sinofobia. Sua inquietação fora despertada pelas evidentes vantagens econômicas do país. Em pouco tempo “a China vai tornar o mundo supérfluo”, exagerava o escritor.
O que Verissimo não sabia é que aquele ano em que escreveu essa crônica viria a ser considerado um divisor de águas para a China. Primeiro, a crise financeira global iniciada poucos meses antes nos Estados Unidos reforçara em Pequim a convicção de que seu modelo de “socialismo de mercado” era superior ao capitalismo sem rédeas dos EUA. Pouco depois veio a Olimpíada de Pequim, espécie de première mundial da China como superpotência.
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Corta para os dois megaeventos organizados pelo país esta semana, que marcam um novo momento de reafirmação da China. Com o status de potência global mais que consolidado, Pequim agora busca construir em torno de si uma rede de apoio econômico e político para ampliar sua influência e se blindar da pressão americana. Na cúpula da Organização de Segurança de Xangai (OSX), encerrada ontem, a liderança chinesa chegou perto de seu maior objetivo: projetar a imagem de uma liderança global estável, como alternativa aos movimentos erráticos e disruptivos do presidente americano, Donald Trump.
Falou-se há algum tempo que o Brasil poderia aderir como observador à OCX, mas a ideia não avançou. Detalhe curioso e pouco conhecido: o país poderia estar ocupando o local onde hoje fica o secretariado da organização, um casarão em Pequim que já foi do Japão. Por capricho, porém, o Brasil rejeitou a oferta de mover sua embaixada para o prédio, que acabou ficando com a OCX. Hoje falta espaço na embaixada brasileira e diplomatas lamentam a decisão.
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Amanhã Pequim entra em lockdown para a parada militar que irá marcar os 80 anos da vitória sobre os japoneses na Segunda Guerra Mundial. Os porta-vozes oficiais deixaram para lá a sobriedade habitual e anunciaram que será um desfile “massivo”, com a exibição de um arsenal de última geração. Se a cúpula aponta para o futuro, o desfile servirá de elo com o triunfo histórico de 1945 que a cúpula comunista usa para se legitimar no poder, além da exibição de poder bélico como recado para os rivais.
A reunião de parceiros estratégicos de Pequim, muitos deles hostis ao Ocidente, tem sido vista como mais um movimento rumo à nova ordem mundial defendida pela China, como contraponto à hegemonia americana. Ao mesmo tempo, porém, mesmo os mais próximos não se enganam: para o governo chinês, a relação com os EUA está em primeiro lugar. Em contatos com Pequim, a diplomacia brasileira demonstrou preocupação com o risco de perder mercados agrícolas na China para competidores americanos num eventual acordo comercial. Mas sem muita esperança de isso ser lembrado na hora da verdade.