Na Cidade de Deus, uma iniciativa está tornando real o que, antes, era apenas um sonho distante para muitas famílias: a possibilidade de viajar de avião. Mas a engrenagem da plataforma Pop Tur, do Grupo Águia, começa a girar bem antes da decolagem: a proposta é treinar moradores das próprias comunidades atendidas como agentes de viagem licenciados.
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Basta ter um celular para trabalhar na função, que não exige dedicação exclusiva: quem faz uma venda ganha comissão de 10% sobre o valor. Hoje, a Pop Tur tem 43 agentes cadastrados, a maioria atuando no Rio e em São Paulo. Aqui, o sistema chegou em fevereiro, na Cidade de Deus, e também já chegou a Praça Seca, Taquara e Parada de Lucas, com planos de expansão para bairros como Vidigal e Rocinha.
Aline Passos, moradora da Cidade de Deus, que entrou no quadro de licenciados da Pop Tur logo no início, já não consegue contar nos dedos quantas viagens vendeu. Hoje, ela também ajuda a treinar outros agentes:
— Nós damos todo o treinamento e suporte. Algumas pessoas, como eu, já trabalhavam com turismo antes — afirma Aline, que tem sua própria agência de viagens na comunidade. — Outras nunca tiveram acesso. Acompanhamos todo o processo, desde um atraso no voo até quando precisa emitir nota fiscal para receber a comissão.
Um dos treinamentos que a Pop Tur oferece são videoaulas que explicam desde como se portar no aeroporto até detalhes do embarque, tanto para agentes licenciados quanto para passageiros.
Ela reforça que, na comunidade, essa é uma alternativa atraente para quem busca renda extra e tem tempo disponível para investir.
A divulgação da iniciativa tem sido feita principalmente pelas redes sociais, mas não só, conta Aline. Jornais comunitários, panfletos e até carros de som são aliados.
— A galera do marketing está fazendo vídeos direcionados para a região, para chamar a atenção. Além das redes sociais, o nosso principal canal é a visita. Às vezes eu passo, apresento a Pop Tur. É o famoso boca a boca. É um trabalho difícil no Rio: por se tratar de comunidade, tem que saber como entrar, o que falar, quem procurar como liderança… A rede social é boa porque evita esse tipo de problema.
Ela conta que as modalidades de pagamento têm aberto portas para muitos moradores. O cliente pode pagar a viagem em até 10 parcelas fixas e precisa quitá-las antes de embarcar.
— Estamos falando de pessoas que muitas vezes nunca viajaram, que vieram de outros estados para ter uma qualidade de vida melhor, mas não têm cartão de crédito ou nome limpo, não conseguem um financiamento tradicional. A Pop Tur oferece um boleto pré-pago, carnês com os quais você se programa — explica a agente de viagens.
A reação, segundo ela, costuma ser de espanto e alegria: “Nossa, na comunidade, na favela, tem agência de viagens? Jamais ia imaginar que tivesse”. Num primeiro momento, prevalece a surpresa; depois, vem a felicidade de poder começar a sonhar com a viagem.
A empresária Cristiane Pinheiro, moradora da Taquara que viveu 12 anos na Cidade de Deus, conheceu Aline em uma das visitas à filha, que continua no local. Foi por meio da Pop Tur que ela conseguiu realizar um sonho antigo: viajar de avião pela primeira vez.
Cristiane conta que desejava fazer uma viagem desde que se casou, em 2024. Mas, por conta dos valores e das formas de pagamento disponíveis, não conseguiu viabilizar a lua de mel. Só este ano, após fazer parcelamento no boleto, pôde embarcar para Fortaleza.
— Se fosse de outra forma, eu não teria feito essa viagem. O valor ficou dentro do orçamento. E a Aline nos deu suporte para encontrar hospedagem, sugeriu locais para passear, montou quase um roteiro. E isso nem foi cobrado — conta.
Ela lembra que chegou a atrasar o pagamento de uma parcela, mas conseguiu resolver a situação com facilidade: ligou para Aline, que emitiu um novo boleto com nova data. Também admite que sentiu medo de dar algo errado no embarque ou até de cair em um golpe ao chegar ao aeroporto, mas, no fim, tudo correu bem.
Para Cristiane, a experiência significou recuperação da autoestima e democratização de acesso:
— Quando você mora em comunidade, é visto com maus olhos. E conhecer o trabalho da Pop Tur fez com que a gente olhasse com outros olhos para nós mesmos e para a comunidade. Isso dá perspectiva, significa que nós também podemos ter acessos, como todos os cidadãos — afirma.
O objetivo da criação da Pop Tur foi justamente dar acesso ao turismo a pessoas que não tinham acesso a crédito ou condições de arcar com pacotes tradicionais. Segundo Thiago Abrahão, CEO do grupo, a ideia foi criar uma alternativa que desse às pessoas a chance de empreender e, ao mesmo tempo, abrir caminho para a realização do sonho da primeira viagem de avião.
— Grande parte dos brasileiros tem vontade de viajar, mas enfrenta obstáculos, como restrições financeiras e a distância dos grandes centros turísticos. Queríamos traduzir esse processo e adaptá-lo à realidade de quem não consegue se enxergar como consumidor do turismo tradicional — explica. — Nas comunidades existe um público que não está atendido. O desafio era pensar como levar essa pessoa até o avião. Há quem não tenha nem o nome limpo, nem o acesso. Trabalhamos de dentro da comunidade, com agentes locais, para que o ganho também fique na própria comunidade.
Os agentes, geralmente conhecidos no território, facilitam e dão credibilidade à operação.
— É um idioma próprio. Sem esse intérprete, o processo ficaria mais complexo. O licenciado ajuda desde a compra até a chegada ao aeroporto, encurtando a distância para o cliente — diz o CEO.
Outro diferencial do modelo está nas regras de pagamento e cancelamento. Segundo Abrahão, se o cliente tiver um imprevisto próximo à data da viagem, é possível cancelar a reserva até dois meses antes do embarque e receber de volta o valor integral já pago. Essa é uma das diferenças em relação à compra tradicional, em que o consumidor perde ao menos parte do dinheiro se não viajar.
— Por causa do nosso modelo de negociação com as companhias aéreas, existe essa flexibilidade. É um processo pensado para dar previsibilidade, confiança e acessibilidade a esse público — afirma o CEO.
Para o futuro, a meta é chegar a 400 licenciados.
— O nosso grande indicador é o sucesso do licenciado. Se ele prospera, inevitavelmente a Pop Tur também prospera — diz Abrahão.