Em que momento viver em situação de rua vira uma realidade? Por quais motivos 350 mil brasileiros estão nesta condição? Conflitos familiares, desemprego, falta de moradia e alcoolismo ou drogas respondem por 90% das citações entre os inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) do governo que estão em situação de rua.
— Rico quando tem conflito familiar, se muda, o pobre vai para a rua — explica Laura Muller Machado, professora do Insper. — O importante é agir logo quando as pessoas vão para a situação de rua. Depois, torna-se muito difícil a reintegração.
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Desemprego e falta de moradia são os fatores mais citados depois do conflito familiar. Sem condições de pagar um aluguel, as ruas se tornam alternativa para muitas famílias que sofrem perda de renda.
Um dos critérios para se definir o déficit habitacional é quando o aluguel se torna muito oneroso, respondendo por mais de 30% do orçamento das famílias com renda domiciliar de até três salários mínimos, ou R$ 4.554. As estatísticas mostram que o aluguel excessivo tem respondido cada vez mais por parcela importante do déficit habitacional no país.
Segundo dados da Fundação João Pinheiro, que calcula esse indicador, 61,3% do déficit no país em 2023, último dado disponível, eram explicados pelo ônus excessivo do aluguel. São 3,66 milhões de domicílios nesta situação. Em 2016, o peso do aluguel era de 49,7%.
A cobertura dos programas de transferência de renda ainda não alcança parte dessa população em situação de rua. Em 2024, 85% deste público incluído no Cadastro Único recebiam Bolsa Família, deixando fora do programa mais de 44 mil pessoas.
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No Benefício de Prestação Continuada (BPC), de um salário mínimo, oferecido a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, a lacuna é ainda maior: somente 32% dos que eram elegíveis a receber o recurso estavam inseridos no programa.
A dependência química de álcool e drogas é a terceira causa mais citada pelas pessoas em situação de rua. Por não ser a causa mais apontada nos registros do CadÚnico, Joana Darc Bazílio da Cruz, coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, reclama que há uma concentração de investimentos em comunidades terapêuticas:
— Os governantes e prefeitos, secretários de assistência social têm que entender melhor a população em situação de rua, qualquer construção política passa por ouvi-los. Somente 30% dessa população é usuário de substância, e fica se investindo em comunidades terapeutas.
Lenilson Ferreira e sua esposa, Rosineide Ferreira, dormem muitas noites na Praça XV, no Centro do Rio. Às vezes ficam na casa de uma irmã dele no Catete, na Zona Sul. Estão nessa situação há quatro meses. Ele está desempregado, não conseguiu pagar o aluguel do apartamento onde o casal morava em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminenses, durante quatro meses e foi obrigado a sair. Eles tiveram que deixar a geladeira e outros eletrodomésticos como pagamento da dívida.
O casal escolheu a Praça XV, evitando os abrigos, por ser o ponto onde Lenilson trabalha como ambulante vendendo roupas, calçados e outros produtos. Sentem-se mais seguros num lugar conhecido.
— Nos abrigos, tem brigas, somem com as nossas coisas — diz Lenilson.
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Eles estão casados há 26 anos e têm três filhos adultos, mas preferem não pedir ajuda. Chegaram a ter um imóvel no programa Minha Casa, Minha Vida, também em Nova Iguaçu, mas contam que tiveram que sair após deixarem de pagar nove meses de condomínio.
Agora, estão tentando o Bolsa Família. Já fizeram a inscrição no programa e aguardam para saber se vão receber o benefício.
Desemprego e falta de moradia são alguns dos principais motivos que levam pessoas a viver na rua. Em março, o governo estabeleceu que os empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida devem destinar 3% das unidades construídas à população em situação de rua.
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Outra iniciativa é o Moradia Cidadã, com 200 imóveis no projeto piloto. Cinquenta são destinados ao Rio, 100 para Belo Horizonte e 50 para o Distrito Federal.
Políticas com este modelo têm sido apontadas como uma das estratégias mais eficientes das cidades para reintegrar a população em situação de rua. A pessoa ou família recebe uma casa de imediato, juntamente com apoio social e médico. Assim, consegue ajuda para encontrar um trabalho e os benefícios sociais a que tem direito.
São Paulo vem desenvolvendo o programa Vila Reencontro, de moradias transitórias, com 550 módulos com capacidade para atender cerca de 2 mil pessoas, por 24 meses.
Mateus Azeredo Santos Paulo
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Mateus Azeredo Santos Paulo, de 32 anos, está há cinco em situação de rua. Já trabalhou como peão de obra, como carregador e hoje ajuda os camelôs do Largo da Carioca, no Centro do Rio, a montar e guardar suas barracas.
É ali, no Largo da Carioca, que ele montou um acampamento improvisado com mais dois colegas e um cachorro, o Beethoven. Dois fatores o levaram a morar na rua, ele diz. Foram conflitos familiares e o consumo abusivo de álcool. As causas se sobrepõem. Ele é casado há sete anos e a mulher mora na favela Pavão Pavãozinho, em Copacabana, na Zona Sul do Rio.
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— Comecei a beber quando tinha 14 anos, meu tio morreu de cirrose. Sou alcoólatra — definiu-se.
Com isso, não consegue viver na casa da mãe, que o impede de beber enquanto está por lá, nem na da companheira, pois as brigas acontecem depois de começarem a beber:
— Um dia, estava dormindo na marquise da banca e minha mãe chegou com minha irmã e minha sobrinha. “É pra viver assim que você saiu de casa?”, ela perguntou ao me ver. Se eu pudesse, voltava no tempo.
Ele já fez vários tratamentos para tentar superar a dependência química e agora faz acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Ele também recebe Bolsa Família.
Mateus não gosta de ir para os centros de recolhimento à noite. Diz que está sempre cheio, com pessoas doentes. No seu acampamento na rua, tem um fogão improvisado, uma panela de pressão e alguns vasos com ervas para tempero.
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Na cidade do Rio, atualmente, há 15 equipes do Consultório na Rua que percorrem a cidade. Cada uma tem em torno de oito profissionais. A meta da Secretaria Municipal de Saúde é chegar a ter 20 equipes. São 14 mil pessoas cadastradas no serviço da prefeitura.
O programa Seguir em Frente, da Prefeitura, reúne as 15 equipes do Consultório na Rua, pontos de apoio na rua, albergues e centros de acolhimento e de atenção psicossocial (Caps). O objetivo é dar tratamento de saúde mental e ajudar na volta ao mercado de trabalho. No país, há 290 equipes de Consultório na Rua e a meta é chegar a 400 em 2027.
Érica Aparecida Silva Augusto
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Érica Aparecida Silva Augusto, de 45 anos, está em situação de rua há três décadas. Diz que foi “procurar na rua o que não achou em casa”. Aos 15 anos, teve desentendimentos com a irmã e saiu de casa. Hoje, após tantos anos nessa situação, é chamada de governadora Érica. Bem articulada, é uma espécie de liderança entre a população em situação de rua no Centro do Rio.
Foram várias idas e vindas nesses 30 anos entre o acampamento na rua e locais de moradia.
— Cheguei a ficar numa ocupação no Centro, mas ela acabou na pandemia.
Érica dorme no Campo de Santana. Toma café em uma das distribuições que são feitas pela cidade e depois vai para a Biblioteca Parque, na Presidente Vargas, no Centro do Rio, para ler. Atualmente, está se dedicando ao livro “1961: Brasil entre a ditadura e a guerra civil”:
— É uma forma de sair dessa realidade cruel.
Com ensino médio completo, trabalha com reciclagem e ajudando a carregar barracas de ambulantes na Pedra do Sal, na Zona Portuária do Rio, onde se concentram bares com rodas de samba.
Os documentos ela guarda no centro pop do Centro do Rio e aproveita as carreatas de voluntários que oferecem almoço e jantar pelas ruas. Assim como outras pessoas nas ruas, Érica rejeita o abrigo nos centros de acolhimento. Diz que há fixação de horário para entrar, às 18h, e isso a impediria de trabalhar. Como o movimento na Pedra do Sal só termina de madrugada, não conseguiria permissão para ingressar nos abrigos.
Segundo o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, há 258 Centros de Referência Especializado em População em Situação de Rua no país, mas somente 228 municípios têm o serviço.
A Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro informou que foram abertas 250 vagas de acolhimento permanentes e 160 temporárias neste ano. Nos primeiros sete meses de 2025, o número de acolhimentos cresceu 269% em relação ao mesmo período de 2024: foram 33.279 contra 12.366, segundo a secretaria.