“O público não há de ficar com saudades de Odete Roitman (Beatriz Segall), porque ela é uma personagem tão forte que sobreviverá à sua morte”, previu o autor de “Vale tudo”, Gilberto Braga, em dezembro de 1988 no GLOBO, dias antes do capítulo em que a megera tomaria três tiros na versão original da novela da TV Globo.
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A profecia se concretizou: Odete segue vivíssima e, 37 anos depois, desfila com a coroa (agora na cabeça de Débora Bloch) de vilã das vilãs da telenovela brasileira, como mostrou na segunda-feira no remake de Manuela Dias. Na chegada ao Rio, reclamou “do calor horroroso”, “da gente horrível, feia, esperando ônibus caquéticos”, e desceu a lenha em Heleninha (Paolla Oliveira), a filha “bêbada”.
Mas a empresária elitista não foi a primeira — muito menos a última — a desafiar nossas réguas morais moldadas pela civilização ocidental cristã e, por isso, ocupar lugar de destaque no panteão das grandes personagens. Suas antecessoras, só na clássica Hollywood, são centenas, uma delas em franca conexão com “Vale tudo”: Veda Pierce, de “Alma em suplício”, filme de 1945 que inspirou Gilberto na criação da golpista Maria de Fátima e de todo o embate com a mãe, Raquel. Nas fábulas infantis transformadas em filmes da Disney, sempre foram basilares, a ponto de, atualmente, tomarem o protagonismo para si, como é o caso de Malévola, com dois filmes homônimos com Angelina Jolie (2014 e 2019), e Cruella, com Emma Stone, em 2021. No universo seriado, a violenta Abby Anderson, que toca o terror na segunda temporada de “The last of us”, no ar na HBO/Max, é a odiada da vez. Um rol variado de gente inesquecível para quem ousou cruzar seus caminhos.
—Intuo que essa conexão do público com as personagens de vilania acontece porque elas fazem o que as pessoas normalmente não podem fazer e, talvez, provoquem uma catarse do nosso lado mais sombrio, que normalmente reprimimos— arrisca Débora Bloch.
A intuição da atriz vai ao encontro da análise do psicanalista André Alves, fundador da Floatvibes, instituto de estudos culturais e pesquisa comportamental. Para ele, as vilãs representam uma distância segura para o que há de mais complexo dentro dos seres humanos.
— Esses tipos dizem o que ninguém tem coragem de falar, sentem o que achamos menos nobre de sentir, desempenham tarefas que, às vezes, adoraríamos fazer, mas não temos coragem porque a culpa nos impede, a vergonha nos segura — diz o psicanalista. —Há um pouco de “fetiche do pior”: nos mostram do que somos capazes como seres humanos. Quando são mais caricatos, sustentam um tipo de anteparo: “Esse é o limite, eu não seria tão terrível assim.” É uma espécie de segurança moral.
No ano passado, a própria Débora também interpretou um tipo nada agradável em “No rancho fundo”, novela das 18h da Globo, escrita por Mário Teixeira. Foi Deodora, que apareceu pela primeira vez em “Mar do sertão” (2022) e teve um desfecho trágico ao perder o filho. Amorosamente odiada pelo público, voltou ao horário como dona de um cabaré para acertar contas do passado com a matriarca da família Leonel, a trabalhadora e astuta Zefa (Andrea Beltrão). Esse embate fez uma das rodas da novela girar. Aliás, essa é a função da vilania, explica o roteirista e pesquisador Gil Marcel Cordeiro, autor de “101 grandes vilões e vilãs da telenovela brasileira” (Artêra), lançado no fim de março.
—Não existe drama sem conflito. O vilão ou vilã é o motor que faz uma história andar — diz Cordeiro. —Num livro ou numa tela, eles tensionam os laços. A função deles é provocar o público.
Mas por que geralmente é a sordidez das mulheres que encrusta no imaginário popular? A maldade masculina não é esquecida — Darth Vader, de Star Wars, está aí para provar —, mas são as vilãs que parecem ter mais espaço cativo no inconsciente coletivo, desde os tempos de Shakespeare e sua Lady Macbeth. Do ponto de vista dramatúrgico, o roteirista e pesquisador Gil Marcel Cordeiro explica.
—A vilã marca mais porque consegue quebrar muitas expectativas ao mesmo tempo — diz Cordeiro. — O vilão é o executivo, o coronel, alguém que usa de todos os benefícios que o homem historicamente já tem. A sociedade sempre esperou que as mulheres fossem doces, dóceis e conciliadoras e, quando uma personagem feminina é cruel, ambiciosa e sarcástica, ela é transgressora. Uma vilã bem escrita desafia tudo o que a sociedade nos ensinou a admirar e a temer.
André Alves, da Floatvibes, tende a concordar com Gil Cordeiro, apesar de destacar que existe um certo “machismo recreativo” na torcida generalizada para ver as mulheres cruéis se darem mal. A própria Beatriz Segall, na época do assassinato de Odete Roitman, disse ter ficado bastante chocada com as comemorações com o desfecho da personagem num país onde a pena de morte é proibida. Contudo, as vilãs não deixam de ter uma contribuição “feminista” na subversão de expectativas, diz o psicanalista:
— Elas querem um lugar social potente e seguro, sabotar os ideais clássicos de hegemonia dos homens. Nesse sentido, tem um mundo interno muito complexo. Por isso, são personagens mais interessantes e densos do que as mocinhas ou até mesmo do que os vilões homens.
Se tem uma vilã segura de si, incontrolável, que quer explodir o status quo, essa mulher é Lola Argento, a dona do império de estética Lolaland de “Beleza fatal”, novela de Raphael Montes exibida na Max e na Band no início do ano. O estilo escrachado, o uso da linguagem neutra (se para Odete Roitman “quanto menos ouvir português, melhor”, para Lola, nossa língua é tão rica que merece até gênero neutro) e as artimanhas mais maquiavélicas foram a receita para reafirmar sua insubmissão.
Para sua intérprete, a atriz Camila Pitanga, texto e direção capricharam nas tintas da comédia para que ela entrasse de sola na categoria de vilãs inesquecíveis.
— Além da estética da “montação”, o molho do humor também foi ingrediente que ajudou a chegar em muita gente — reflete Camila sobre o sucesso da personagem, que rendeu uma enxurrada de memes nas redes sociais.
Não é toda vilã que arranca risadas do público, porém, são elas que mais rendem piadas no universo digital. Hors-concours é Nazaré Tedesco, interpretada por Renata Sorrah em “Senhora do destino”, novela de Aguinaldo Silva exibida em 2004 na Globo. A “gostosa” fez o diabo: empurrou o marido da escada, armou sequestro de bebê, mas o que atravessa o mundo quase 20 anos depois é o meme da “Nazaré confusa”.
— Humor é uma peça importante, principalmente nos dias de hoje — diz o diretor Dennis Carvalho.
Ele, aliás, é especialista em gente ruim. Dirigiu “Vale tudo” em 1988, “Dono do mundo” em 1991 (com o calhorda Felipe Barreto, vivido por Antônio Fagundes), “Celebridade” em 2003 (com Cláudia Abreu no papel de Laura “cachorra” Prudente da Costa) e mais um tanto de novelas com personagens deliciosamente desagradáveis. Por isso, comandou a reunião das vilãs históricas da TV Globo exibida no Show de 60 anos da emissora, na segunda passada. Estavam lá Nazaré, claro, e também Perpétua, de “Tieta”; Raquel, de “Mulheres de areia”; Branca, de “Por amor”; Carminha, de “Avenida Brasil”; Cristina, de “Alma gêmea”; Vanessa, de “Todas as flores”; e Maristela, de “Garota do momento”. Foi um quadro de comédia, com roteiro assinado por Ricardo Linhares e Juan Jullian, que fez piada com um tanto de assuntos, de reprises (“novela em preto e branco nem passa inteira no Globoplay”) a presença de influenciadores digitais na TV (“tô achando que colocaram influencers no nosso lugar”).
— Por pior que a personagem seja, tem que ter humor. Fica mais atraente, fica mais fascinante — reflete Dennis.
Por mais que não exista uma escala de perversividade ou mesmo de graça para compor uma grande vilã, todos os entrevistados concordam que existem, sim, dois elementos essenciais para que a vilania de uma personagem fique calcificada na mente. Humanidade e carisma. O roteirista e diretor Teodoro Popovic, do filme “A vilã das nove” (no Disney+), com Karine Teles e Camila Márdila, explica:
— Todas as grandes atrizes emprestam seu carisma a vilãs memoráveis. E essas personagens nunca são apenas pessoas horríveis. Têm bondade, sofrem interferências, se deixam carregar. De alguma maneira, nos compadecemos. E isso faz com que elas atravessem gerações, passem por remakes, sejam reinterpretadas.
Sobre isso, aliás, o Rio2C terá um palestra com Chris Brancato, criador de “Narcos”, da Netflix, no dia 30, às 10h, na Cidade das Artes.
Lola (Camila Pitanga) ,de ‘Beleza fatal’
Destaque na novela lançada no início deste ano na plataforma Max, Lola é uma influenciadora que comanda a clínica de estética Lolaland e o destino de meio elenco. Ambiciosa e sem escrúpulos, recebe uma colher de chá de sua intérprete, Camila Pitanga: “Ela tem contradições, grandezas e pequenezas, vive uma montanha-russa, que faz as pessoas amarem odiá-la. Mesmo sendo pilantra e assassina, a gente gosta dela”, diz a atriz. “Ela é protagonista do próprio desejo.”
Abby (Kaitlyn Dever), de ‘The last of us’
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No game que deu origem à série de zumbis da HBO/Max, Abby é uma figura imponente, com ombros largos e músculos enormes. A atriz escolhida para vivê-la na TV, Kaitlyn Deverer, tem 1m57 e aparência frágil. Mas só a aparência. Quem está vendo a segunda temporada já descobriu do que Abby é capaz (sem spoiler). Com o tempo, ela deve passar de antagonista a, pelo menos, anti-heroína. Mas, por enquanto, ainda é a personagem mais odiada do streaming ao redor do mundo.
Paloma (Camila mÁrdila), de ‘A vilã das nove’
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Neste intrigante filme brasileiro que estreou no Disney+ em 2024, uma mulher com um segredo em seu passado (Karine Teles) vê sua história transformada em uma telenovela em que ela é a principal vilã (interpretada com gosto por Camila Márdila, acima). “É uma história que coube nesse filme a partir dessa hipérbole que a novela promove, de uma grande vilã, atravessada pela comédia”, diz o diretor do longa, Teodoro Popovic, que assina o roteiro com Maíra Bühler.
Villanelle (Jodie Comer), de ‘Killing eve’
Uma assassina psicopata que trabalha para uma facção criminosa não deveria ser amada — mas tanto a agente responsável por capturá-la quanto o público saem da série “Killing Eve” (BBC, 2018-2022) apaixonados e obcecados por Villanelle. Méritos para a britânica Jodie Comer, que pegou a personagem dos livros de Luke Jennings e, tirando o máximo dos roteiros de Phoebe Waller-Bridge (a genial criadora de “Fleabag”), construiu uma vilã inesquecível.
Maristela (Lilia Cabral), de ‘Garota do momento’
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Com uma presença impactante o suficiente para já integrar o time de grandes vilãs de novela apresentado no “Show 60 anos” da TV Globo, a rica socialite interpretada por Lília Cabral apronta das suas na atual novela das 18h da emissora, “Garota do momento”. No Rio do final dos anos 1950, essa socialite reacionária e preconceituosa é também muito inteligente e manipuladora, e está sempre um passo à frente das pessoas quando o assunto lhe interessa.
Agatha harkness (Kathryn Hahn), do MCU
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Agatha surgiu no Universo Cinemático Marvel (MCU) como uma simpática vizinha na série “Wandavision” (Disney+). Mas por trás do sorriso falso havia uma bruxa que orquestrava ilusões e mortes. Derrotada, foi forçada a abdicar de seus feitiços, mas os fãs pediram e a vilã de Kathryn Hahn ressurgiu este ano em “Agatha desde sempre” (Disneyt+), onde busca recuperar seus poderes e espalhar o caos novamente.
(Colaborou Emiliano Urbim)