Há casas que guardam segredos — e o Palacete do Parque Lage, na Zona Sul do Rio, guardava camadas inteiras deles. Sob quatro demãos de tinta nas paredes internas, removidas com a paciência cirúrgica dos restauradores, vieram à tona pinturas originais, tetos policromados e texturas que pareciam lembranças. O trabalho, maior intervenção no imóvel em cem anos, é conduzido pelo governo do estado, por meio da Secretaria de Infraestrutura e Obras Públicas (Seiop), com investimento de R$ 21,4 milhões. Mais do que rebocos e pigmentos, quando concluído, em julho de 2026, os reparos farão do palacete um espaço renovado para a educação artística e a visitação, mostrando que memória e patrimônio só sobrevivem quando se tem cuidado e recursos.
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Quatro segredos do Parque Lage
Iniciadas em maio, as obras de restauro incluem, além da recuperação das superfícies originais, melhorias de infraestrutura: acessibilidade, iluminação, instalações elétricas e hidráulicas, climatização e um moderno sistema de combate a incêndios.
A promessa é devolver ao público esses espaços que, por décadas, foram o lar da família Lage e é, desde 1966, a sede do Instituto de Belas Artes (hoje a Escola de Artes Visuais — EAV). Tombado desde 1957 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o palacete é o segundo ponto turístico mais visitado da cidade, atrás apenas do Corcovado.
O que se vê no interior do palacete é um restauro que mistura arqueologia, “medicina” de conservação e pintura fina. Restauradores usam bisturis, espátulas e solventes em gel preparados para não agredir a base original e realizar um verdadeiro “striptease” — nome do produto que remove com precisão, camada a camada, tinta e massa até alcançar o que se acredita ser a pintura original.
— Encontramos a pintura decorativa original, e estamos tentando resgatá-la. Foram pelo menos quatro camadas de tinta que retiramos até chegar a esse ponto. Para isso, escurecemos o ambiente e usamos uma luz de ultravioleta, porque ela mostra o que está por cima. Estamos identificando o estado de conservação do material e definindo o melhor procedimento para a reintegração desse ambiente — explica a restauradora Alice Torres, responsável pelos serviços internos.
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Alice descreve como as camadas contam histórias da construção civil: as mais antigas e “resistentes” mostraram pigmentos à base de óleo e esmalte; as mais recentes, acrílicos e massas modernas. Essa leitura ajuda a equipe a decidir quais produtos usar para reintegrar e proteger, sem apagar o passado, exatamente o oposto de um “pente-fino” que nivela tudo. Em alguns trechos a descamação foi tão bem-sucedida que desenhos altamente detalhados puderam ser parcialmente reconstruídos; em outros, a perda de material exige soluções de recuperação mais cautelosas.
Percorrer os ambientes em fase de restauração é uma surpresa atrás da outra. A antiga sala de jogos da família Lage e atual biblioteca, que por décadas recebeu alunos como espaço da EAV, tinha, sob uma primeira camada de tinta bege, pinturas e um teto policromado com ornamentos de gesso — elementos que nem mesmo antigos frequentadores ou professores tinham visto. As paredes tinham desenhos em formato de quadriculado, feitos com linhas finas que se cruzam e formam losangos. Dentro deles, aparecem detalhes em vermelho e branco, enquanto nas bordas há molduras florais e arabescos em tons de azul e ocre.
A descoberta, segundo Tania Queiroz, diretora interina da EAV, muda a relação da escola com seu próprio prédio: o lugar que serviu como biblioteca também era obra de arte.
— Não só os alunos, mas os visitantes vão se surpreender com tudo isso que estamos vendo. A escola vai ser contemplada com ambientes estruturados para a prática da pintura, mas o público vai poder conhecer mais um pedaço da História do Rio — disse a diretora.
Ao lado, uma saleta com arco jamais aberta ao público se revelou um cantinho quase secreto: paredes com quadros desenhados em vermelho, cabeças de anjo e iconografias sacras cuidadosamente pintadas. Um achado que amplia a rota de visitação.
A antiga suíte principal do casal Lage, que virou a sala do diretor da escola, também ganhou nova leitura. As paredes, antes encobertas por demãos modernas de tinta, apresentaram texturas onduladas e detalhes de gesso no teto, com estrelas e anjos, e um tom de verde-jade desbotado que surge aqui e ali. Moldes das estruturas de gesso foram produzidos, e peças que haviam caído ou se perdido já estão sendo repostas com fidelidade.
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No salão nobre, as paredes de pedras de granito em tons de grená e cinza contrastam com um teto de gesso de cair o queixo: são dezenas de molduras em forma de hexágonos e quadrados, cobertas por desenhos em espiral e flores douradas. Onde faltavam ornamentos, os restauradores aplicaram moldes para recompor as formas; na pintura, surgem cores que estavam escondidas havia décadas. Há quem defenda douramentos pontuais com folha de ouro em relevo, um material mais caro e não previsto no orçamento, mas que retomaria o brilho original e o luxo sutil do início do século XX.
Do lado de fora, o trabalho também exige testes e cuidado. A limpeza da fachada, feita em pedras e estruturas de concreto, passou por testes com diferentes escovas, das cerdas macias às mais firmes, e por dois tipos de escovação: primeiro aquosa (apenas água e sabão neutro) e, depois, uma escovação a seco. Segundo a arquiteta responsável pela obra, Camila Terra, a fachada será a primeira entrega, em fevereiro de 2026.
— Depois da limpeza, entra a etapa química, feita com produtos específicos e controlados, que garantem a remoção de agentes biológicos e manchas, como os líquens, que são aqueles organismos esverdeados que aparecem com o tempo e se fixam na pedra, sem danificar o material original. É um processo delicado, mas já dá para ver uma diferença grande — diz o restaurador Leandro da Silva, responsável pela equipe da fachada.
A área da piscina, cartão-postal do Parque Lage, com vista para o Cristo, também passou por limpeza e recomposição. O concreto que estava escurecido recuperou tons mais claros, devolvendo o brilho à piscina, cenário de tantos filmes, como “Macunaíma”, de 1969. E o café da manhã do parque, que tem fila de visitantes e cariocas, poderá reabrir, no ano que vem, com essa surpresa.
Enquanto o restauro avança, a EAV foi transferida para as cavalariças — uma solução temporária que garante a continuidade das aulas. Paralelamente ao restauro do palacete, a obra prevê a construção de salas mais estruturadas para os mais de 700 alunos, além de banheiros e climatização. A visitação ao parque também está suspensa durante as obras.
A história do Parque Lage atravessa séculos. Antes de ser o parque público que conhecemos, a área foi um engenho de açúcar no Brasil colonial, pertenceu a Rodrigo de Freitas Mello e Castro e a família Lage, que mandou construir o palacete nos anos de 1920. A propriedade foi convertida em parque público no início da década de 1960.