Microscópico para as dimensões da Amazônia, o Rio Tucunduba, em Belém, tem menos de quatro quilômetros de extensão, mas sintetiza a injustiça ambiental e a necessidade de adaptação urgente, temas caros à agenda da COP30. Em suas águas carregadas de esgoto, fluem a desigualdade e a falta de saneamento básico, o maior problema ambiental de quem vive na Amazônia. Com a COP30, coletivos e pesquisadores de Belém querem contar ao mundo a história do igarapé que nasce no jardim de uma bela casa, vira esgoto ao cruzar a cidade e dos esforços para ressuscitá-lo, como forma de adaptação ao calor e às chuvas.
A nascente do Tucunduba fica numa propriedade do bairro do Marco e lá forma um lago. A água da chuva acumulada em terrenos um pouco mais elevados se concentra num ponto mais baixo e emerge do solo para alimentar o que já foi um igarapé limpo. Hoje, ela só persiste porque os proprietários a protegem. Há quatro décadas o professor Cândido Paraguassu Eleres e sua família conservam o berço do igarapé.
A esposa do professor, dona Cecília Eleres, de 85 anos, lembra que há 40 anos havia até como navegar e pescar em quase todo o Tucunduba. Ela mesma tinha uma canoa.
— Era uma beleza. Havia muitos animais, pássaros. Mas o rio foi ficando cada vez mais seco. Fazemos o que podemos para protege-lo. Temos muito orgulho disso — afirma dona Cecília.
Ao deixar a propriedade, o rio desaparece, aprisionado sob ruas, casas e prédios, até emergir dois quilômetros depois, já como canal de esgoto. Atravessa alguns dos bairros mais pobres, populosos e quentes, fornalhas até para a naturalmente tórrida Belém. Neles, a despeito da sujeira, vira área de lazer e via de transporte.
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Na divisa dos bairros de Guamá e Terra Firme, a voluntários plantaram árvores nas margens repletas de lixo. Conseguiram restaurar pequenos bosques. E, sem opção de lazer local, criaram usam a área para descansar em redes, beber cerveja ou somente jogar conversa fora, a despeito do lixo, dos urubus e do mau cheiro.
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Nos poucos trechos ainda navegáveis, o rio-esgoto vira caminho para pequenos barcos carregados de açaí e outros produtos que serão vendidos em feiras.
— Queremos aproveitar que Belém e a Amazônia estão em evidência no mundo devido à COP30 para mostrar que temos soluções de adaptação vindas da própria sociedade. O Rio Tucunduba é simbólico, mas os problemas que o afetam são os mesmos dos demais rios urbanos e de Belém e de toda a Amazônia — frisa Camila Magalhães, diretora da Mandi, uma ONG paraense de defesa de rios urbanos formada majoritariamente por mulheres.
A Amazônia é a maior bacia hidrográfica do planeta, mas sua população tem a mais precária situação sanitária do Brasil. Só 23% dos domicílios contam com coleta de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil. E 35% da população da Amazônia Legal moram em residências sem acesso à água potável. E isso nas zonas urbanas. Em comunidades ribeirinhas rurais inexiste saneamento básico.
— Esse pequeno rio é um “case” do caos do que é hoje o saneamento na Amazônia. E saneamento é um direito básico, e também uma forma de adaptação a tempos cada vez mais extremos. E traz ainda ganhos ao reduzir custos decorrentes, por exemplo, de doenças associadas à água suja — afirma Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil.
Muita água para se ver e nada para se beber, lamenta a jornalista e pesquisadora paraense Larissa Noguchi, que lançou na COP30 a série Pelos Rios da Amazônia, da Marahu Filmes, que conta a história de oito rios, dentre eles o Guamá, que banha Belém e onde deságua o Tucunduba.
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Coletivos como Mandi e Defensores dos Rios Urbanos não querem apenas a despoluição do Tucunduba e demais rios de Belém, mas sua renaturalização. Isto é, querem devolver ao rio suas margens originais, sem concreto e árvores.
A renaturalização de rios é uma das soluções baseadas na natureza para reter a água nas margens e, assim, evitar inundações. Atende ainda às regras de Áreas de Proteção Permanente (APPs), que estabelece a proteção da vegetação nas margens de cursos d’água.
A Mandi desde 2021 realiza “expedições” ao Tucunduba com estudantes e grupos comunitários. Muitos não sabem que o curso d’água que chamam de valão e canal é, na verdade, um rio.
— Não queremos canais de paredes de concreto, como os que têm sido feitos para “urbanizar” os valões. Eles viram aprisionam o rio em concreto que recebem esgoto e não têm qualquer tipo de vegetação nas margens. Queremos nosso rio de volta, com as margens com árvores e terra, para nos oferecer lazer e segurar inundações — afirma Osvaldo Mesquita, liderança do movimento Tucunduba Pro Lago Verde.
O lago onde brota o Tucunduba tem cerca de 80 mil litros d’água. Menos que uma gota se comparado ao rei da bacia, o gigante Amazonas cuja vazão é de 210 milhões de litros por segundo. Mas representa uma imensidão para as pessoas que vivem em seu entorno.
O riozinho de 3,6 quilômetros é o centro de uma bacia hidrográfica com outros 12 canais, em cinco bairros, e onde vivem cerca de 300 mil pessoas.
A geógrafa Ana Luisa Araújo, da ONG Defensores dos Rios Urbanos, diz que para os moradores mais antigos, o Tucunduba ainda é um rio e não um canal como indicam algumas placas.
— O objetivo é que os canais e valões voltem a ser rios, para toda a população — frisa Araújo.
O modesto Tucunduba tem sua foz no Rio Guamá, dentro do Campus da Universidade Federal do Pará (UFPA). Quis o destino que este ano estivesse ali às suas margens a Cúpula dos Povos, que tem no cerne de sua agenda a justiça ambiental, tudo o que o Tucunduba e a gente que vive em sua bacia nunca viram.

