A Rússia comprou, de forma encoberta, equipamentos de alta tecnologia provenientes de empresas da Europa, dos Estados Unidos e da Ásia para reforçar a proteção de sua frota de submarinos nucleares no Ártico, segundo uma investigação internacional intitulada Russian Secrets, publicada por um consórcio de veículos de comunicação europeus e americanos. O esquema, que contava com empresas de fachada para realizar as transações, teria permanecido oculto por cerca de uma década, permitindo que o Kremlin obtivesse discretamente materiais sensíveis para fins militares.
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De acordo com a investigação, mais de 50 companhias de defesa e fornecedores marítimos dos Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, Suécia, Itália e outros países membros da Otan, além do Japão, venderam tecnologias avaliadas em mais de US$ 50 milhões (R$ 270 milhões) a Mostrello Commercial Ltd., uma empresa do Chipre — país membro da União Europeia —, ligada a um contratante militar russo.
Entre os itens adquiridos estão sonares, robôs subaquáticos capazes de operar em profundidades de até 3 mil metros, cabos de fibra óptica e embarcações falsas de pesca e pesquisa (mas que, na verdade, realizavam tarefas de instalação para os militares russos), usados na criação do sistema de vigilância de codinome “Harmony”.
Segundo o Russian Secrets, o sistema consiste em uma rede de sensores subaquáticos projetada para identificar submarinos estrangeiros próximos ao Mar de Barents, na região do Ártico. Nessas áreas, operam submarinos russos armados com mísseis balísticos intercontinentais, preparados para um eventual confronto nuclear, sobretudo com os Estados Unidos, segundo registros judiciais alemães e especialistas ocidentais em segurança.
Bryan Clark, ex-oficial naval americano e diretor do Centro de Conceitos e Tecnologia de Defesa do Instituto Hudson afirmou ao Washington Post — que fez parte das investigações — que o sistema Harmony fortalece a capacidade da Rússia de mover seus submarinos nucleares “sem serem detectados, assediados ou interditados”.
— Este é um esforço da Rússia para reduzir a capacidade dos Estados Unidos de entrar e vigiar áreas ao redor de bases submarinas e rastrear seus submarinos desde o ponto de implantação — disse Clark.
Informações cruciais, como a localização exata dos sensores submarinos, permanecem sigilosas, diz a investigação. Mas a análise dos trajetos de navios comprados pela Mostrello indica que o sistema forma uma barreira semicircular que vai de Murmansk até Novaya Zemlya e segue até a Terra de Alexandra, situada no arquipélago ártico da Terra de Francisco José, no Oceano Ártico. Atrás dessa linha estão as bases e submarinos da Frota do Norte russa, então qualquer submarino que cruze essa fronteira corre o risco de ser detectado prontamente pelos equipamentos.
As transações ocorreram entre 2013 e 2024, envolvendo empresas de defesa e tecnologia como Kongsberg (Noruega), NEC (Japão) e EdgeTech (EUA), que mantinham negócios com a Mostrello. Todas as empresas negaram qualquer irregularidade ao serem perguntadas sobre o assunto.
A Mostrello, com sede em Limassol, era controlada pelo empresário russo Alexey Strelchenko, ligado a operações marítimas e instalação de cabos para o Ministério da Defesa da Rússia.
O envolvimento da empresa foi exposto durante um julgamento na Alemanha neste ano, no qual um cidadão russo, Alexander Shnyakin, foi condenado por coordenar as aquisições ilegais, em violação às leis comerciais alemãs.
Segundo o WP, os componentes encomendados pela Mostrello eram frequentemente entregues inicialmente em endereços na Alemanha, sob a justificativa de serem utilizados para levantamentos de cabos no Báltico. A empresa funcionava como fachada para a moscovita Upravelenie Perspektivnyh Tecknologij (UPT).
Registros do site da UPT indicavam que, nas últimas duas décadas, ela manteve contratos com órgãos de segurança e defesa da Rússia, incluindo o FSB, responsável pela inteligência interna, e o SVR, sua agência de espionagem externa.
De acordo com autoridades americanas, a agência de Inteligência americana (CIA) havia alertado Berlim sobre a operação em 2021, embora tenha se recusado a comentar oficialmente sobre o assunto.
Após uma operação das autoridades alemãs, que resultou em prisões e buscas em locais ligados à rede, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos impôs sanções à Mostrello e a outras empresas associadas ao governo russo no ano passado, ainda sob o governo Biden, por seu papel em “fornecer à Rússia tecnologia e equipamentos avançados dos quais ela precisa desesperadamente para apoiar sua máquina de guerra”.
Em entrevista à emissora alemã NDR, que liderou a investigação, o enviado de sanções da União Europeia, David O’Sullivan, afirmou não ter se surpreendido com as revelações sobre o esquema.
— Os russos são muito espertos em contornar nossas sanções — disse O’Sullivan, acrescentando que eles recorrem a “vários truques que podem disfarçar a verdadeira natureza da transação”.

