Parlamentares usaram um artifício de indicações “paralelas” de emendas de bancada para apadrinhar, no ano passado, R$ 2,9 bilhões de recursos que pertenciam formalmente ao Executivo. A manobra, que ocorreu com anuência do governo Lula (PT), privilegiou a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), que recebeu ao menos R$ 313 milhões. Os dados constam em relatório divulgado ontem pela Transparência Brasil.
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No estudo, a entidade observou que apenas 20% das emendas “paralelas”, ou cerca de R$ 600 milhões, tiveram sua aplicação associada a uma “etiqueta” orçamentária que permite rastrear o gasto final. O restante do valor “paralelo” no Orçamento do ano passado, embora tenha sido usado como emenda, se misturou às verbas “livres” dos ministérios, o que dificulta sua “rastreabilidade e transparência”.
Segundo o levantamento, o valor destinado à Codevasf equivale a mais da metade da verba “paralela” que pode ser rastreada. O estudo da Transparência Brasil obteve, através da Lei de Acesso à Informação, ofícios encaminhados pelas bancadas parlamentares à estatal, mostrando que eles estavam “cientes do quinhão a que julgam ter direito” da verba do Executivo.
“Deputados e senadores se dirigem diretamente ao presidente da estatal e utilizam expressões como ‘minha cota’ e ‘portador do crédito’, indicando inclusive o contato de associações comunitárias que devem receber bens de alto custo adquiridos pela estatal, como retroescavadeiras”, diz o estudo.
O Ministério da Defesa aparece em seguida, com R$ 109,6 milhões em emendas de bancada “paralelas”, à frente de pastas como as de Cidades e de Agricultura.
O estado mais contemplado com esse tipo de recurso no ano passado foi o Amapá, que concentrou R$ 92 milhões. Piauí, Ceará, Bahia e Amazonas também aparecem nos principais destinos.
As emendas de bancada, cujo pagamento é obrigatório, são inscritas no Orçamento com o código “RP 7” e obedecem ao limite de 1% da receita corrente líquida do ano anterior. Já as emendas “paralelas” são marcadas com os códigos “RP 2” e “RP 3”, que se referem, respectivamente, a gastos discricionários do Executivo federal e a recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Essas duas modalidades, em teoria, têm sua aplicação definida pelo governo e poderiam ser contingenciadas.
Na prática, porém, o levantamento da Transparência Brasil mostrou que os parlamentares detalharam aos órgãos do governo como os recursos seriam gastos e que o Executivo atendeu quase integralmente a esses pedidos, em um “comportamento que se assemelha ao das emendas impositivas”.
Desde 2020, ainda segundo o relatório, o Congresso já destinou R$ 9,4 bilhões em emendas de bancada “paralelas”, dos quais apenas 39% podem ser rastreados.
Em junho, outro estudo da Transparência Brasil já havia identificado um artifício semelhante envolvendo as emendas de comissão: o apadrinhamento de forma “paralela” chegou a R$ 8,5 bilhões do Orçamento federal de 2025.
Na ocasião, a entidade pediu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, relator de uma ação que trata das regras de transparência sobre emendas parlamentares, para suspender esses repasses “paralelos”.
Após cobrar explicações da Advocacia-Geral da União (AGU), da Câmara e do Senado, Dino determinou, no fim de agosto, que eventual apuração sobre emendas “paralelas” deveria ocorrer em uma ação à parte. Na semana passada, em despacho no caso das regras de transparência, o ministro pediu manifestações da AGU e da Procuradoria-Geral da República (PGR), última etapa antes de levar a ação a julgamento.
De acordo com o relatório divulgado ontem pela Transparência Brasil, a aplicação das emendas de bancada “paralelas” burlou uma decisão de Dino, naquela ação, de suspender a execução de emendas parlamentares entre agosto e dezembro de 2024. À época, o ministro só autorizou a retomada dos pagamentos sob a condição de o Congresso estabelecer parâmetros mais rigorosos de transparência.
Durante o período de suspensão, no entanto, o governo Lula empenhou — isto é, reservou para uso — R$ 79,1 milhões em emendas “paralelas”.
No relatório, a Transparência Brasil avaliou que esse tipo de aplicação das emendas de bancada “repete práticas consideradas inconstitucionais pela Suprema Corte”.
“É imprescindível que as emendas paralelas sejam compreendidas como emendas parlamentares, sendo submetidas ao controle interno e externo”, disse o documento.