O que era para ser apenas um atendimento de rotina em uma Clínica da Família, parte da rede pública de saúde no Rio, acabou envolvendo os profissionais da unidade em um filme de terror. A paciente, em certo momento, disse ter perdido o celular e, em seguida, alegou que algum funcionário teria furtado o aparelho. Ela deixou o local, no subúrbio da cidade, e depois voltou acompanhada por traficantes armados, que distribuíram ameaças. O caso é anterior à invasão de criminosos com fuzis promovida na madrugada da última quinta-feira, no Hospital Municipal Pedro II, em Santa Cruz, na Zona Oeste — eles planejavam assassinar um homem que, já baleado, estava internado no endereço. Espalharam pânico, mas não encontraram seu alvo. Os dois episódios são mais comuns do que se imagina: um documento ao qual O GLOBO teve acesso informa que, devido à violência armada no Rio, Clínicas da Família e postos de saúde precisaram fechar 698 vezes entre o início do ano e meados de setembro. A média é de quase três incidentes por dia.
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Os números foram extraídos do programa Acesso Mais Seguro, instituído no Rio em 2009. Trata-se de um protocolo de guerra elaborado em parceria com a Cruz Vermelha Internacional, adotado por escolas e unidades de saúde municipais. Através dele, quem trabalha nestes lugares analisa as condições de segurança para abrir o estabelecimento e continuar os serviços até o encerramento das atividades. São estipulados quatro níveis de avaliação: verde (funcionamento normal), amarelo (cancelamento das atividades externas), laranja (fechamento temporário) e vermelho (fechamento total e evacuação).
Os dados mostram que do início do ano até a semana passada, a violência impactou de alguma forma o serviço de saúde municipal ao menos 2.683 vezes. Foram, em média, dez episódios por dia — na pior data, 29 de janeiro, uma mega operação policial aconteceu no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio.
— Cada unidade ainda adapta o protocolo para a sua realidade. Aqui, um dos sinais de alerta é se a boca de fumo que há próxima da clínica está funcionando “normalmente”, como em dias sem operações ou tentativas de invasão. Outro, se as barricadas estão abertas ou fechadas — conta um profissional, que pediu para não ser identificado.
Quando a equipe aciona o protocolo laranja ou vermelho, os profissionais e pacientes se abrigam no local mais seguro: geralmente um corredor interno, protegido pelo maior número possível de paredes.
Depois, o funcionário precisa inserir no sistema da prefeitura os motivos que o levaram a tomar essa decisão. Relatos obtidos pelo GLOBO revelam situações angustiantes. Um registro deste mês, na Zona Oeste, diz: “unidade com todos os acessos a ela fechados. Barricadas em chamas neste momento impedindo que os profissionais entrem no território”. Em agosto, em endereço na Zona Norte, o informe foi o seguinte: “recebemos toque de recolher para as 17h na comunidade próxima à unidade. Desde então estamos ouvindo alguns estrondos de bombas próximas. Estamos com diminuição de ônibus e dificuldade de deslocamento. Após atendimento de todos os usuários, colocamos a unidade em vermelho”.
Há confrontos decorrentes de operações policiais contra criminosos, mas também fruto da guerra entre facções, sobretudo na Zona Norte da cidade. A região enfrenta há meses uma disputa territorial entre o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro. As unidades locais concentram 55% de todos os fechamentos totais (nível vermelho) na cidade.
A unidade com mais fechamentos no Rio é a Clínica da Família Herbert de Souza, próxima ao morro do Juramento. Ontem, pela manhã, O GLOBO esteve no endereço, que também fica perto da estação de metrô Thomaz Coelho, e testemunhou o som de tiros nas redondezas. Rajadas de metralhadora cortaram o céu em intervalos de poucos minutos, impondo um clima permanente de medo e tensão. Moradores, funcionários e pacientes seguem um protocolo informal: quando os disparos começam, resta apenas se abrigar e esperar. Em segundo lugar neste triste ranking fica o posto de saúde Sylvio Frederico Brauner, em Costa Barros. Os dois são pontos na Zona Norte que convivem com confrontos entre grupos criminosos: somadas, essas unidades representam 13% dos alertas vermelhos emitidos na saúde carioca.
Após a invasão no Pedro II, na semana passada, o secretário municipal de Saúde Daniel Soranz e o secretário estadual de Segurança Pública Victor Cesar brigaram publicamente. Depois, a prefeitura enviou um relatório detalhado de fechamentos das unidades para o governo estadual.
— Profissionais de saúde, e até eu, já tivemos que pedir autorização para o traficante abrir a barricada e deixar entrar na unidade. Há unidades alvejadas a bala — diz Soranz.
Em nota, a Secretaria de Estado de Segurança Pública afirmou reconhecer a gravidade dos casos e explicou que, “somente após a repercussão na imprensa, recebeu a planilha enviada pela Secretaria Municipal de Saúde”. A pasta informou que está verificando a procedência dos relatos, já que os números apresentados não constavam nos registros oficiais da polícia. O órgão reafirmou o compromisso com a proteção de profissionais de saúde, pacientes e toda a sociedade, defendendo diálogo entre as esferas de governo e cooperação no combate ao crime organizado, sem que questões de segurança e saúde sirvam de munição para disputas políticas.
Uma médica que atua próximo a uma das favelas onde há disputa entre traficantes na Zona Norte conta que precisou criar “uma casca” para conseguir trabalhar ao som de tiros. Mas nem todos resistem à pressão:
— O medo é algo muito particular. Trabalhamos com um auxiliar que foi afastado por ter crises de ansiedade por causa da violência. Sou de um grupo que já está mais acostumado, mas não podemos normalizar. Essas situações geram uma angústia muito grande. Tenho certeza que trabalho numa zona de guerra — conta ela.
No início de setembro, o profissional de uma Clínica na Zona Oeste descreveu uma cena cinematográfica:
“Helicóptero da polícia sobrevoou a unidade dando rajadas de tiros. Entrada de 3 caveirões e troca de tiros intensa. Unidade lotada com 2 gestantes com contrações, 2 idosos com pressão arterial instável e uma criança com crise convulsiva. Lançamento de gás lacrimogêneo na porta da unidade e tivemos que levar a gestante e criança em carro próprio até um lugar que a ambulância pudesse fazer a locomoção de forma segura”, relatou ele, no sistema, ao justificar o fechamento da unidade em que trabalha.
Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Julita Lemgruber é autora de uma pesquisa que avaliou o impacto da violência na saúde de moradores de favelas. Ela diz a perda do território para grupos armados nos últimos anos agravou a situação:
— A Polícia e a Saúde precisam sentar para conversar. O que aconteceu no Pedro II foi fora da curva, mas a saúde no Rio sofre cotidianamente com isso. A Segurança precisa ouvir os profissionais de saúde, que estão muito vulneráveis.