Com palavras cheia de dor, David Grossman, o escritor israelense vivo mais importante do país, há décadas cotado ao Nobel de Literatura, rompeu o silêncio sobre o conflito em Gaza. Em uma entrevista ao jornal italiano La Repubblica, ele se juntou às vozes que, dentro de Israel, começam a se levantar para denunciar o que está acontecendo na Faixa de Gaza.
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— Durante muitos anos, me recusei a usar essa palavra. Mas agora, com as imagens que vi, com o que li e ouvi de pessoas que estiveram lá, já não consigo me conter. Com imensa dor, com o coração partido, devo reconhecer o que está acontecendo diante dos meus olhos. Genocídio. É uma palavra-avalanche: uma vez pronunciada, não faz outra coisa senão crescer, como uma avalanche, justamente. E traz ainda mais destruição e sofrimento — declarou.
Poucos dias antes da entrevista de Grossman, as organizações humanitárias israelenses B’Tselem e Médicos pelos Direitos Humanos acusaram o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de estar cometendo um “genocídio”.
Algo semelhante fez a jurista israelense Orit Kamir, que, em artigo publicado no jornal Haaretz, definiu o que ocorre em Gaza como “uma traição às vítimas do Holocausto”. O historiador israelense Omar Bartov, especialista em genocídios, afirmou, em um extenso artigo no The New York Times, que é exatamente isso o que está acontecendo no enclave palestino.
Nascido em Jerusalém em 1954, comprometido desde sempre com o diálogo palestino-israelense e que, em 2006, perdeu um filho de 21 anos, Uri, durante a guerra no Líbano, Grossman explicou na entrevista que decidiu falar porque não suportava mais o horror.
— Sinto uma urgência interior de fazer o que é certo, e este é o momento para isso — afirmou, ao ser questionado sobre os números crescentes de mortos que se acumulam diariamente em Gaza.
— Estou mal. Embora saiba que esses números passem pelo controle do Hamas e que Israel não pode ser o único culpado por todas as atrocidades que vemos. Apesar disso, ler num jornal ou ouvir em conversas com amigos na Europa a justaposição das palavras ‘Israel’ e ‘fome’, vindo de nossa história, de nossa suposta sensibilidade diante dos sofrimentos da humanidade, da responsabilidade moral que sempre dissemos ter com cada ser humano e não apenas com os judeus… tudo isso é devastador. E me confunde, não no plano moral, mas no pessoal — comentou o escrito.
Ao ser entrevistado pela renomada jornalista Francesca Caferri, especializada em notícias sobre o Oriente Médio, Grossman se perguntou: “como chegamos a esse ponto? A ser acusados de genocídio? Mesmo só pronunciar essa palavra, ‘genocídio’, em referência a Israel, ao povo judeu, só isso, o fato de haver essa justaposição, já é suficiente para mostrar que algo terrível está acontecendo”.
Para Grossman, a ocupação de Israel dos territórios palestinos “corrompeu” o país.
— Um juiz da Suprema Corte de Israel disse uma vez que o poder corrompe, e que o poder absoluto corrompe absolutamente. E foi isso que nos aconteceu: a ocupação nos corrompeu. Estou absolutamente convencido de que a maldição de Israel nasceu com a ocupação dos territórios palestinos em 1967. Talvez as pessoas estejam cansadas de ouvir isso, mas é a verdade. Tornamo-nos muito fortes militarmente e caímos na tentação gerada por nosso poder absoluto e pela ideia de que podemos fazer tudo — acrescentou.
— Precisamos encontrar uma forma de sair dessa associação entre Israel e genocídio. Antes de tudo, não devemos permitir que quem tem sentimentos antissemitas use e manipule a palavra genocídio. E depois, devemos nos perguntar: somos capazes, como nação, somos suficientemente fortes para resistir aos germes do genocídio, do ódio, dos assassinatos em massa? Ou vamos nos render ao poder que nos garante sermos os mais fortes? Ouço pessoas como Smotrich e Ben Gvir (dois ministros israelenses de extrema direita) dizerem que devemos reconstruir assentamentos em Gaza: mas o que estão dizendo? Esqueceram do que acontecia quando estávamos lá, com o Hamas matando centenas de civis israelenses, mulheres e crianças, sem que pudéssemos protegê-los?
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Autor de Grande Cabaré, A Mulher Foge e A Vida Joga Comigo, entre muitos outros títulos traduzidos para dezenas de idiomas, Grossman se mostrou a favor da solução de dois Estados, que considerou a única alternativa viável. E chamou de “boa ideia” a proposta do presidente francês Emmanuel Macron de reconhecer um Estado palestino:
— Não entendo a histeria com que foi recebida aqui em Israel — disse.
— Talvez ter que lidar com um Estado real, com obrigações concretas, e não com uma entidade ambígua como a Autoridade Nacional Palestina, possa ter suas vantagens. É claro que deverão existir condições bem específicas: nada de armas. E a garantia de eleições transparentes, nas quais esteja vetada a participação de qualquer um que defenda o uso da violência contra Israel — afirmou.
A entrevista teve grande repercussão, inclusive na Itália. O líder da Esquerda Italiana, Nicola Fratoianni, escreveu no X:
“Depois das palavras de Grossman, o que farão os ministros do governo Meloni? Vão dizer que ele é antissemita? Vão se atrever a chamá-lo de aliado do Hamas? Mas não se envergonham de serem cúmplices do criminoso Netanyahu?”, alfinetou, referindo-se à postura até agora pró-Israel do governo de direita de Giorgia Meloni e elogiando a “análise lúcida e amarga” de um dos grandes intelectuais israelenses.