Em 1971, aos 21 anos, Joel Vasconcelos Santos era um atuante líder estudantil quando foi preso pelos órgãos da repressão militar, nos arredores do Morro do Borel, na Tijuca, Zona Norte do Rio, e não foi mais visto. A família passou décadas em busca de informações sobre seu paradeiro e, em 2014, teve a confirmação de sua morte. A identificação só foi possível a partir de comparações de digitais e características corporais como peso e altura. Parentes do jovem nascido na cidade de Nazaré, na Bahia, consideram, no entanto, que algumas perguntas ainda seguem sem respostas.
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— Gostaria de saber quem torturou e matou meu irmão e também que ficasse muito bem esclarecido de onde ele veio e por quem foi levado para o IML — cobra a advogada Altair Vasconcelos, de 68 anos, irmã de Joel.
As informações exigidas por Altair podem estar em meio a uma montanha de documentos encontrados no prédio que abrigou o Instituto Médico Legal (IML), na Rua dos Inválidos, no Centro. O imóvel está fechado e em estado de abandono desde 2009, quando a sede do órgão foi transferida para a Avenida Francisco Bicalho, na região portuária.
Com o intuito de proteger os arquivos deixados para trás, o Ministério Público Federal (MPF) pediu, por meio de ofício, o tombamento desse acervo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e ao Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac).
As duas instituições de preservação, além do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), estão acompanhando inspeções no local. A mais recente ocorreeu no último dia 27, e até 22 de maio devem acontecer outras quatro. As vistorias são feitas pelo MPF, em parceria com grupos como o Coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação e o Tortura Nunca Mais, e na presença da Polícia Civil.
— É importante que se coloque uma limitação a qualquer tentativa de descarte ou ação que possa descaracterizar ou fazer desaparecer essa documentação — alerta o procurador Julio Araujo, do MPF.
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Patrícia Wanzeller, superintendente do Iphan no Rio, disse que o tombamento, que será feito em caráter provisório, protege a documentação encontrada no IML:
— A partir do momento que é tombado pelo Iphan, com a ratificação do Arquivo Nacional, a polícia não pode mais mexer — explica.
O estudante Joel Vasconcelos foi o 15º desaparecido político identificado pela Comissão Nacional da Verdade com base em informações obtidas nos arquivos do IML — os outros 14 reconhecimentos ocorreram em 1991. Todos os corpos haviam sido sepultados como indigentes no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte da cidade.
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A papelada ainda não foi analisada, mas, amparados por esses precedentes, representantes dos coletivos envolvidos nas vistorias acreditam que os documentos, alguns em condições bem precárias, podem ajudar a esclarecer casos de violações de direitos humanos.
— No material encontrado há fichas funcionais dos agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Alguns que a gente já manuseou têm fotos da pessoa, as delegacias por onde ela passou, os elogios que esse servidor teve ao longo da carreira pela atuação na repressão. É uma documentação inédita e muito importante — avalia Felipe Nin, do Coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação.
Rafael Maui, do Grupo Tortura Nunca Mais do RJ, reforça:
— Tem uma série de livros de registros de óbitos, de laudos de necrópsias dos períodos de 1971 a 1981, o mais violento da ditadura. Tem material vinculado aos agentes do estado, fotografias de perícias e de necropsia, e também do setor de papiloscopia, de identificação. Cruzado com outras informações, pode ajudar a identificar (mortos e desaparecidos).
Todo esse processo foi deflagrado no início do ano passado, com uma representação no MPF para denunciar o abandono do prédio onde funcionou o Dops, na Rua da Relação, também no Centro. Numa das visitas àquele local, constatou-se que documentos haviam sido levados para o IML, onde foi descoberto farto material dos anos 1930 a 1980.
O antigo IML está em situação precária, com janelas quebradas. De acordo com o Governo do Estado, o imóvel pertence à União e está sob uso da Polícia Civil, que mantém vigilância patrimonial. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU), por meio da Superintendência do Rio, informou que o imóvel está em análise para fins de destinação no âmbito do Programa de Democratização de Imóveis da União — Imóvel da Gente. Mas o processo de incorporação ao seu patrimônio, após devolução pelo estado, ainda não foi finalizado.
O Inepac informa que recebeu o ofício encaminhado pelo MPF solicitando o tombamento da documentação histórica encontrada no antigo prédio do IML. “O conteúdo possui relevância para a preservação da memória do período da ditadura civil-militar e está sendo analisado”, diz, em nota.
