“Esse rio é minha rua/ Minha e tua, mururé/ Piso no peito da lua/ Deito no chão da maré/ Pois é, pois é/ Eu não sou de igarapé/ Quem montou na cobra grande / Não se escancha em puraqué”, canta Dira Paes, a plenos pulmões, a bordo do barco de nome Rosana, enquanto ele desliza pelo Rio Guamá, em Belém.
— Aqui, o rio é o nosso asfalto — define a atriz, após recorrer à música, clássico do poeta paraense Ruy Barata, escrito na parede do terminal hidroviário da cidade, para exaltar as belezas naturais de seu estado natal.
Estamos navegando rumo à Ilha do Combu, oásis repleto de verde e coalhado de pés de açaí e cacau. A área de proteção ambiental é uma das principais atrações turísticas das redondezas, com restaurantes de culinária local e atividades de lazer.
O lugar serviu de locação para o filme “Manas”, que estreia nos cinemas dia 15, com Dira no elenco. Embora encha a tela com a exuberância da região amazônica, o longa é um soco no estômago ao tratar do abuso infantil baseado em histórias reais.
Durante uma conversa com a cantora paraense Fafá de Belém, a diretora Marianna Brennand (leia a entrevista aqui) ouviu falar pela primeira vez sobre o horror de crianças violentadas em balsas sobre o Rio Tajapuru, na Ilha do Marajó, no Pará.
Meninos e meninas de comunidades ribeirinhas que, incentivados pelos pais com dificuldades financeiras, sobem em barcos atracados para vender frutas típicas da região e viram presas fáceis. Muitas vezes, em troca de um prato de comida ou de um mísero pacote de macarrão.
Fafá também narrou uma perversa “cartela de bingo” em que crianças de 9 anos, representadas por caroços de açaí, são “bingadas” ao sabor da sorte. E situações em que abusadores recusam meninas de 14 anos por considerarem “velhas” ou “usadas demais”.
Dessa triste realidade, surgiu a ficção “Manas”, rodada a partir de relatos de famílias, assistentes sociais e demais profissionais que atuam no combate à violência na região amazônica — como a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, que vive sob proteção policial.
Ela e o delegado Rodrigo Amorim serviram de inspiração para a policial Aretha, personagem de Dira, e foram faróis apontando caminhos determinantes para a pesquisa.
A história gira em torno de Marcielle (a paraense Jamilli Correa, numa estreia arrebatadora como atriz), uma menina de 13 anos, que sofre abuso sexual do pai (vivido pelo ator Rômulo Braga) e numa dessas tais balsas. Até que decide confrontar a engrenagem violenta que rege sua família e as mulheres da sua comunidade.
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Foi para chegar à casa da protagonista do filme, rodado em 2022, que cruzamos o Rio Guamá. No Combu, Rosivaldo de Oliveira, o Preto, morador dali e “faz tudo” nos bastidores, construiu a casa de Marcielle que, erguida sobre palafitas, reproduz a arquitetura marajoara.
— Nossa, que nostalgia voltar aqui — repara Jamilli, agora com 16 anos. — Tem o mesmo cheiro das filmagens.
Enquanto ela passa a mão pelas paredes erguidas com de ripas de madeira, as lágrimas escorrem por suas bochechas. A produtora Carolina Benevides se aproxima e seca carinhosamente o rosto da menina. Dira também vai chegando perto até abraçá-la por trás. A equipe, quase 100% feminina, está emocionada. Elas passaram dois meses ali, rodando o longa e, sobretudo, cuidando umas das outras.
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— Olho para Jamilli e me vejo. Viajo para meu começo e percebo que nunca deixei de pertencer a esse lugar. Ao contrário, sempre fiz questão de destacar o esplendor da minha terra. Pude reverenciar e dar voz a quem não tem. Esse filme une a atriz e a cidadã que eu sou — afirma Dira.
Voltar ao set dá à atriz “a sensação de dever cumprido”.
— Essa é a vida de muita gente daqui, é a nossa raiz. Se o rio é nossa rua, as árvores são nossas parentes, e as cores, nosso diferencial — filosofa ela, olhando pela janela da casa cenográfica. — O filme fala dessa realidade amazônica no esplendor da sua beleza e de suas mazelas. Mas o abuso é um tema universal. Tanto que, por onde o longa, passa, toca. Em Veneza (em 2024, o filme levou o prêmio máximo da Jornada dos Autores na mostra paralela ao famoso festival), foi uma comoção. Ele transmite a realidade difícil sem abusar do público, forçá-lo a estar diante de coisas tão duras. Nossa personagem vem com essa força da natureza porque ela própria é uma força da natureza.
A bravura da protagonista, que não se curva a uma realidade que muitos consideram “parte da cultura local”, como mostra o longa, foi a mesma da diretora ao meter fundo o dedo na ferida. Essa é a opinião de Fafá de Belém, que esteve na pré-estreia, no Pará, dias atrás.
— Duvidei que Marianna conseguisse fazer o filme. Foi muito corajosa em se meter numa terra de ninguém para falar de um assunto que é envolto em cortina de fumaça, blindado com a conivência de políticos. Ela furou o cerco para denunciar uma história que não chegava às pessoas. Eu sou daqui, e meu conhecimento sobre essa situação terrível é recente justamente porque o assunto é velado. Não existe política nem um olhar sensível para ele.
Mães, avós e bisavós que passaram pela mesma violência chegam a achar que é “destino”, acrescenta Fafá.
— É um ciclo de violência que sequestra a infância das crianças e que a gente precisa mudar. O pai manda a menina de 9 anos buscar o querosene para que a família se locomova pelo rio. A criança é abusada pelo barqueiro e, quando chega em casa, o pai está na rede, esperando para abusar dela de novo — conta a cantora. — A saída para meninas que conseguem fugir dessa realidade são as ruas de Belém. E a solução para as “damares da vida” é que meninas de 5 anos parem de andar de calcinha! No momento de COP30, espero que se olhe com dignidade para o nosso povo. Que estendam a mão com profundidade e vejam por onde podemos começar. O filme faz sua parte, é bandeira de fortalecimento para essas mulheres. A grande mensagem dele é dizer: “A gente pode romper esse ciclo”.
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Outra representante do Norte, a cantora Dona Onete também assistiu ao filme.
— Ele mostra a importância de não fechar os olhos quando vemos uma criança entrar na casa de uma pessoa que já está de olho…
Fafá e Onete não estão sozinhas ao incensar o projeto. Os mais de 20 prêmios que ele abocanhou por festivais — dia 18, ainda renderá à sua diretora o “Women in Motion”, em Cannes, dedicado a novos talentos femininos do cinema — corroboram o ponto de vista delas.
No entanto, um dos maiores orgulhos da equipe é o aval da irmã Henriqueta, dona de trajetória de décadas de luta pelos direitos humanos na Ilha de Marajó.
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— Na tela, vi o retrato fiel do que vivi. “Manas” tem a proposta cirúrgica de fazer com que a população fique atenta a esse crime estrutural que acontece em várias partes do Brasil. Traz reflexão das violências, mas o foco é fazer com que a transformação chegue em corações e mentes. No passado era assim; no presente, continua; mas não queremos isso no futuro. Queremos a transformação, e ela se dá pela formação e informação. “Manas” trata da realidade e da mudança de comportamento.
Maria Fortuna viajou a convite da Paris Filmes