“Mãe, quero dormir na rede”. A frase soa dilacerante na boca da protagonista de “Manas” (Jamilli Correa), uma menina de 13 anos vítima do abuso sexual do pai (Rômulo Braga).
Não é fácil assistir ao filme de Marianna Brennand, que estreia nos cinemas no próximo dia 15 de maio. Mas é necessário. Os mais de 20 troféus abocanhados pelo longa ao redor do mundo — do prêmio máximo da Jornada dos Autores, mostra competitiva paralela do Festival de Veneza 2024, ao “Women in Motion”, dedicado a novos talentos femininos, que Marianna recebe no Festival de Cannes, dia 18 — reforçam a certeza de que é preciso falar de abuso, essa espécie de epidemia mundial para a qual a sociedade tem dificuldade de olhar.
Foi numa conversa coma cantora paraense Fafá de Belém que Marianna ouviu pela primeira vez sobre o horror de crianças de comunidades ribeirinhas exploradas sexualmente em balsas sobre o Rio Tajapuru, na Ilha de Marajó, no Pará. Meninas e meninos que, incentivados pelos pais com dificuldades financeiras, sobem em barcos atracados para vender açaí e viram presas fáceis. Muitas vezes, em troca de um mísero pacote de macarrão.
Da revolta diante dessa realidade, brotou na documentarista brasiliense, diretora de “Francisco Brennand” e “O coco, a roda, o pnêu e o farol”, o desejo de denunciar a tragédia. Ao mergulhar na pesquisa, tomou contato com outra realidade perversa: o alto índice de abuso infantil intrafamiliar na região. Entendeu que essa história não poderia ser contada como documentário. Seria doloroso demais para as vítimas narrarem situações vividas.
Surgiu, então, a ideia da primeira ficção de Marianna, rodada a partir de relatos reais de famílias, assistentes sociais e demais profissionais que atuam no combate à violência na região amazônica – como a irmã Marie Henriqueta, que vive sob proteção policial e inspira personagem Aretha, vivida por Dira Paes.
A coragem da protagonista ao confrontar a engrenagem violenta que rege sua família e as mulheres da comunidade é a mesma que Marianna teve ao meter fundo o dedo na ferida. Leia abaixo uma entrevista com a diretora:
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Precisamos falar sobre a abuso. Mas, na prática, não é nada fácil…
O maior desafio foi fazer um filme sobre abuso que não trouxesse mais violência. A ficção abriu portas para construir personagens complexos e não tratar nada superficialmente. Foram 10 anos de pesquisa. Todas as violências são silenciadas por quem faz e por quem sofre. Dá vergonha, medo, algumas mulheres nem entendem que estão sofrendo violência. Outras, são ameaçadas. Às vezes, contava sobre o projeto e diziam: “Ai, não quero saber. Tem gente que não quer nem olhar.
Em nenhum momento, o filme mostra o abuso em si, não há cena expositiva sexual. É o resultado do olhar feminino, mas também da busca para trazer o espectador?
Tudo foi construído dentro da opção de não mostrar a violência gráfica, o abuso em si. Assim como era inadmissível qualquer olhar sexualizado sobre o corpo da menina. Sim, ansiava pela conexão com o espectador, que ele saísse transformado, com vontade de mudar a realidade, gerar debate para que a sociedade apoie mulheres, brigue por políticas públicas e por um judiciário que ofereça acolhimento para a mulher denunciar.
A perspectiva feminina conduziu a narrativa e o set de filmagem.
“Manas” é sobre as violências que vivemos pelo olhar da mulher. Oportunidade de debater como nossos corpos e narrativas estão sendo representados, contar uma história terrível com ética, usando a gramática do cinema a favor. Não tem trilha sonora, a construção da linguagem fotográfica é sensorial, a atuação é seca. A preocupação era não estetizar, embelezar a violência. Não queria que nada tirasse o espectador da Marcielle, que sua emoção estivesse conectada à dela, como se estivesse vendo a vida se desenrolar, sentindo a urgência dessa violência.
Que cuidados tomou com a equipe e as atrizes crianças?
Todo mundo ali tinha a sensação de um propósito. Muitos viveram abuso moral, assédio sexual. As crianças não leram o roteiro. Fizemos uma preparação de um mês, com conversa e brincadeiras para entender o nível de maturidade emocional, os diferentes estágios de experiências de vida e como se sentiam confortáveis em participar. Tudo para preservar a integridade emocional, psicológica e física das crianças.
Os pais sabiam do que se tratava o filme. É uma realidade próxima deles. Todos tinham ou conheciam alguém havia passado por uma experiência. Às crianças, só dávamos informações necessárias para conduzir as cenas. Trabalhávamos os diálogos, a gênese, o significado das cenas trazendo o lado simbólico. O norte era jamais fazer com que essa menina precisasse passar por sensações e sentimentos que não eram necessários. Usamos artifícios como a música para alcançar o estado de emoção sem precisar trazer à tona o que estava acontecendo.
Está tudo no corpo da protagonista, que começa brincando de boneca, feliz e, após o abuso, se torna retraída, se fecha para o mundo. É uma perspectiva muito de dentro da situação.
A equipe do filme é 99% feminina. Infelizmente, todas nós já vivemos algum tipo de violência. Emocional, sexual, psicológica, moral. Conseguimos nos colocar ali, sabemos as consequências dos abusos. No corpo, na alma. Trabalhei com minha psicanalista para desenhar um perfil psicológico bebendo em situações que já tinha vivido e pesquisando como essas violências imprimem no corpo. Na hora em que o pai a abraça, ela (a protagonista) faz xixi. Geralmente, representações de abuso são na visão do abusador ou de um tribunal. Esse é o nosso ponto de vista. Vamos vendo essa menina secando por dentro à medida em que a violência acontece, nas reações emocionais, no físico dela, que vai virando uma conchinha, começa a ter olheiras.
A cena em que ela pede desculpas à mãe, que está com raiva da filha por ciúme do marido, mostra como são camadas de crueldade com as envolvidas numa situação de abuso…
A gente quase julga ela e, à medida em que revela sua história, entendemos que também passou por aquilo, e a mãe dela também. São gerações de mulheres violentadas que não têm para onde ir, não conhecem outra realidade. O abuso coloca a vítima e o entorno num lugar cruel. Vi muitos relatos de mães com ciúmes da filha. Algumas, vão à delegacia retirar queixa porque acham que precisam desse homem.
Queria que essas nuances fossem sinalizadas para refletir sobre as consequências sérias do abuso, que deixas vítimas reféns de várias maneiras. Era importante que o pai não fosse o clichê do homem violento, que se duvidasse ele seria capaz de fazer aquilo. A maior parte dos abusadores não são monstros, psicopatas. É gente em que se confia. Assim, conseguem se manter abusando, porque a nossa sociedade permite que sigam impunes. Quando uma menina tem a coragem de falar para a mãe ou tia, muitas vezes, é desacreditada.
Durante esse processo, o que mais te tocou, provocou crise de choro, paralisia ou certeza de que deveria seguir?
Há histórias que sangram em mim até hoje. Que gostaria de não saber ou precisar lembrar. Mas é justamente por isso que o filme existe. Não podem continuar acontecendo. Imaginar uma criança de seis anos sendo abusada por um tripulante em troca de um prato de comida, do Diesel que abastece o gerador da casa ou permite que aquela família se locomova pela região… Foram inúmeras viagens por Marajó. Percorrendo o gigante Rio Tajapuru. O filme mostra essa fragilidade de ser muito pequeno dentro daquele rio, a sensação de que essas crianças e mulheres não têm para onde correr. Não se consegue atravessar a nado, sair correndo e pedir ajuda. A natureza poderosa e abundante também oprime.
Quais as consequências de fazer um filme como esse em você? Se tornou outra mulher? Impactou na escolha dos seus próximos projetos?
Me virou do avesso. Dez anos ouvindo histórias de violência contra mulheres e crianças abririam uma ferida, provocaram sentimento de indignação permanente. Enquanto eu viver, vou lançar luz e trazer à tona questões para que a mulher possa existir sem se sentir ameaçada. Não preciso ter filhos para achar um absurdo o abuso infantil. Não precisa ser mulher. Todo mundo tem lugar de fala nessa causa, tem que brigar. Esse filme me trouxe coragem, indignação profunda e vontade de agir. Nosso desejo é que ele esteja a serviço de uma campanha social ligada a todas as ONGs e projetos que combatem a violência com os quais estamos envolvidos. Há muito temas dentro do feminino, uma lista de situações e violências que nos são impostas. Falar delas vai estar sempre no meu desejo. Meu próximo projeto vai estar ligado a isso.
Qual a importância de abordar esse tema na arte?
O cinema tem a capacidade única de capturar o que não pode ser dito, como camadas de violência a que as mulheres são submetidas apenas por existir nessa sociedade patriarcal, machista, misógina, que permite que homens abusem, agridam, ridicularizem mulheres em todo lugar do mundo. O abuso é um problema estrutural que precisa ser debatido e encarado de frente. É difícil romper o silêncio, porque o abusador é poderoso. A mulher tem muito em jogo: carreira, família, sabe que vai ser descredibilizada, ameaçada.
O prêmio no Festival Veneza e a homenagem em Cannes provam que abuso é um tema de impacto mundial.
Conversa com o mundo todo. Em Veneza, eram 11 votos e levamos 9. Na deliberação do júri, um dos jurados contou que quando disse à mãe o tema do filme, ouviu que essa situação aconteceu numa vila da Bulgária. Outro, comentou que mulheres passam por isso em qualquer parte do mundo. Um terceiro defendeu que o filme precisava ser visto em toda parte. Que conseguiu levar espectadores europeus para dentro de um lugar específico ao mesmo tempo que ampliou e conectou com uma questão mundial. Isabelle Huppert veio falar comigo. Taylor Russell pediu que Bárbara Paz nos apresentasse, e me disse que ficou comovida. Houve um boca boca impressionante.
Não vamos contar o final, mas ele é uma vingança feminista que tem sido o desfecho de vários filmes dirigidos por mulheres…
É simbólico. Quis que houvesse uma libertação que, na vida real, não é possível. É uma provocação para dizer: “Para chegar nesse ponto, quantas instâncias falharam conosco?”. Há um sistema enorme que falha com mulheres que tentam denunciar e não são acolhidas, um sistema judiciário machista que não tem estrutura para acolher. Espero que o filme ajude a movimentar a sociedade a pedir por mudanças públicas políticas, de estrutura e segurança. Como denunciar e voltar para a casa onde o abusador está, sujeita a retaliações? Ser ridicularizada na delegacia? O que encoraja uma mulher a denunciar? O filme é difícil, dolorido, incômodo. Não é para agradar, mas comover e buscar a transformação.