Um mês após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciar seu tarifaço — e uma escalada retaliatória com a China — o Brasil começa a sentir efeitos positivos em setores como de calçados e de soja, com boas perspectivas ainda para as indústrias têxtil e moveleira. Importadores americanos ampliaram a compra de calçados brasileiros e sondam empresários aqui para substituírem produtos chineses, de máquinas a alimentos e roupas. A China, por sua vez, está comprando mais soja do Brasil.
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Apesar dos efeitos positivos, o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral, sócio da consultoria BMJ, ressalta que a estratégia de Trump, que de uma expectativa de negociação rápida passou a um impasse entre EUA e China, provocou instabilidade em fluxos de investimento no mundo.
— Com a guerra comercial, você cria uma instabilidade muito grande, principalmente em investimento. As empresas levam de dois a três anos fazendo estudos e modelagens. E, de repente, seu modelo acaba e não funciona mais — afirma Barral, que já foi árbitro da Organização Mundial do Comércio (OMC).
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Trump começou a elevar as tarifas de importação em fevereiro, poucos dias após sua posse, com foco principalmente na China. Em abril, anunciou as chamadas tarifas recíprocas e criou uma taxa universal de 10%, que ele suspenderia depois por 90 dias. A exceção foram os produtos chineses, que ainda são tributados em até 145%.
Antes mesmo do tarifaço, os embarques de soja para Pequim já vinham crescendo. De janeiro a março, a alta foi 34%, somando US$ 6,7 bilhões.
— As empresas relatam que a China está pedindo mais soja em grão — disse o presidente da Associação Brasileira das Indústrias da Óleos Vegetais (Abiove), André Nassar.
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Para Daniel Furlan Amaral, diretor de Economia e Assuntos Regulatórios da Abiove, o principal desafio é a necessidade de preservar a margem no mercado interno, em meio à alta da demanda chinesa. Daí a importância de políticas públicas que fortaleçam a industrialização de soja no Brasil.
O aumento da procura por produtos brasileiros também vem dos EUA. No setor alimentício, a Bella Giornata, empresa de alimentos em pó da Della Foods, já fechou o envio de cinco contêineres, nas próximas semanas, de achocolatados e bebidas em pó para o país.
Estes itens destinam-se a redes varejistas, conta Pamela Manfrin, CEO da empresa. A executiva, que já havia conversado com O GLOBO sobre o potencial impacto do tarifaço em abril, estima o valor do carregamento em R$ 2 milhões.
— O mercado americano segue aquecido em termos de demanda — afirma Pamela. — Registramos, no primeiro trimestre deste ano, um aumento de 50% nas demandas em comparação com o mesmo período de 2024. Para o segundo trimestre, a projeção é de um crescimento adicional de 20% nas exportações em relação ao primeiro trimestre deste ano.
Por isso, a executiva acredita que deverá dobrar o volume comercial com os EUA já no segundo semestre deste ano.
Oportunidade para a indústria de móveis
Outra entidade que vê espaço para ampliar as exportações é a Associação Brasileira das Indústrias do Mobiliário (Abimóvel). Os Estados Unidos são hoje o principal destino dos móveis brasileiros, respondendo por 27,6% das exportações do setor em 2024.
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Segundo a Abimóvel, antes do tarifaço, estimava-se um potencial adicional de crescimento de 47,9% para os próximos anos, com as exportações de produtos acabados podendo atingir US$ 346,5 milhões ao ano. A entidade, agora, busca entender, com o governo, “os impactos da nova dinâmica global sobre a atividade”.
No setor de calçados, as negociações também estão em alta. É o caso da Usaflex, que produz entre 25 mil e 32 mil pares de calçados por dia em quatro fábricas no Rio Grande do Sul. Os americanos estão em busca de novos parceiros, diz o CEO da empresa, Sergio Bocayuva:
— Isso porque estão enfrentando dificuldades com fornecimento, como é o caso da China, que tem reduzido bastante as exportações para os Estados Unidos por conta da questão da taxação alta.
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Em geral, as empresas americanas, como redes varejistas, querem comprar os calçados brasileiros para estampar suas próprias marcas.
Bocayuva avalia que a guerra comercial pode fazer o Brasil voltar a ser um grande exportador de calçados para os EUA, posição que detinha até os anos 1970, quando começou a perder espaço para os asiáticos:
— O Brasil é o 4º maior produtor de sapatos do mundo. A expectativa é positiva.
De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados), em março o Brasil vendeu 1 milhão de pares para os EUA, no valor de US$ 17,54 milhões, alta de 34,8% ante o mesmo mês de 2024. No primeiro trimestre, os americanos compraram 2,93 milhões de pares, o equivalente a US$ 54,7 milhões, um crescimento de 10,3% em volume na comparação anual.
O setor, no entanto, teme o outro lado da moeda: a desova da produção chinesa no mercado brasileiro. Somente em março, as importações de calçados aumentaram 47,7% em relação ao mesmo período de 2024, o que significa a entrada de mais de 5 milhões de pares no Brasil. A principal origem foi a China, de onde vieram 2,55 milhões de pares, um salto de 51,7%.
— Essa invasão ocorreu antes mesmo da entrada em vigor da nova tarifa (em abril). A previsão é que aumente mais nos próximos meses — alertou o presidente executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira.
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Barral, da BMJ, também vê risco de a guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo alimentar o dumping chinês, ou seja, a venda, em outros países, por preços artificialmente baixos:
— A China tem uma superprodução de várias commodities industriais, em setores como químicos e de metais, como o aço. O problema é que a China continua a produzir muito e, se esse produto não vai para os EUA, vai para a Europa ou para países emergentes.
O especialista lembra que esse movimento ocorre desde 2018, mas pode ganhar ainda mais força caso as tarifas impostas por EUA e China permaneçam no patamar atual, de 145% e 125%, respectivamente. E alerta:
— Há um risco de a indústria brasileira não conseguir sobreviver, porque são setores que, para continuar funcionando, precisam de escala de produção muito grande. Quando você tem perda de mercado, o investidor prefere fechar a indústria.
Perspectivas na indústria têxtil
O setor têxtil também teme o dumping chinês, mas reconhece que aumentaram as consultas a empresas brasileiras, principalmente aquelas que já exportam para o mercado americano.
— Dadas as tarifas ora aplicadas aos produtos chineses, as compras da China ficaram quase inviáveis. Há uma perspectiva, sim, de os negócios aumentarem — diz Fernando Pimentel, diretor-superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).
Em 2024, o Brasil exportou US$ 68 milhões de têxteis confeccionados para os EUA. Mas a China abocanhou US$ 28 bilhões dos US$ 113 bilhões que os americanos importaram. Esse volume, que provavelmente deixará de entrar nos EUA, corre o risco de vir para o Brasil:
— A China vai buscar outros mercados, e o Brasil está na mira.
Dados da Abit mostram que, em 2024, o Brasil importou US$ 6,6 bilhões de confecções. Desse total, cerca de 60% saíram da China.
‘Bagunça’ na logística
Além do risco de dumping chinês, Barral aponta uma paralisia nos fluxos de custo e comércio, o que traz ainda mais incerteza:
— Há bagunça em toda a logística do comércio internacional. Você pode ter coisa para exportar e não ter navio, o que aumenta o custo de transporte. Há aumento do seguro, porque aumenta a possibilidade de atraso, ficar parado no porto e o comprador não querer mais o produto porque a tarifa começou a ser aplicada — diz Barral. — Quem paga é o consumidor final, ou se diminui a lucratividade das empresas.
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Esse clima de paralisia é observado por André Bordignon, sócio-proprietário da Brawel Máquinas, de São Paulo, que exporta em torno de 25% de sua produção para os Estados Unidos. Clientes relatam dificuldades, e já há um caso de atraso no pagamento, de uma empresa que importa peças da China e está praticamente paralisada.
Bordignon, que também havia conversado com O GLOBO no mês passado, diz que as consultas saltaram após o tarifaço, mas não são fechados negócios. Como o Brasil foi tarifado no piso de 10%, em tese nossos produtos ficarão mais competitivos que os chineses. A questão é o esfriamento da economia americana.
— Tem a parte boa, de ter ficado mais competitivo, e tem a parte ruim, que ninguém está querendo fechar negócio.