Crianças vivendo numa embaixada. Um líder estudantil desaparecido. Uma mulher passa dias numa casa no campo. Uma jornalista acompanha velório de ex-presidente. Diretor de universidade incomoda um agente do Estado. Um policial divide as noites entre a companhia de vedetes e esquadrões da morte. Do Rio ao Recife, passando por Brasília e Santiago, no Chile, seis histórias de gêneros e estilos diferentes, ambientadas na época da ditadura militar, de 1964 a 1985, chegam aos cinemas nos próximos meses.
O período foi objeto de inúmeros filmes ao longo das décadas. De clássicos da época como “Terra em transe” (1967), de Glauber Rocha, e “Cabra marcado para morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, a marcos da retomada como “O que é isso, companheiro?” (1997), de Bruno Barreto, e “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006), de Cao Hamburger, o período nunca saiu de cena no audiovisual brasileiro. Maior sucesso nacional pós-pandemia, com 5,8 milhões de espectadores, “Ainda estou aqui” (2024), de Walter Salles, conquistou o Oscar ao retratar a história de Eunice Paiva (Fernanda Torres), que precisou criar sozinha os cinco filhos após o assassinato do marido pelo regime militar. O que parecia um olhar isolado se tornou o primeiro de uma nova onda de obras.
— Num tempo de tanto negacionismo histórico, mais do que nunca é importante lembrar, não deixar que a tentativa de apagamento político da nossa história recente prossiga — diz Flavia Castro, diretora de “As vitrines”.
Estrela de “O agente secreto”, filme de Kleber Mendonça Filho, Wagner Moura pede mais filmes sobre o tema:
—A ditadura aconteceu há muito pouco tempo, temos que fazer mais filmes. Eu fiz “Marighella” (2019), que é muito diferente de “Ainda estou aqui”, que é muito diferente de “O agente secreto”. Cada um vai para um lugar. É um período em que sofremos cerceamento de liberdade, com morte, sequestro, tortura. É importante que as pessoas vejam e digam: “Não quero que aconteça nunca mais”. A ditadura é uma ferida que ainda não curou. Tanto é que o Bolsonaro foi eleito em 2018 e tivemos uma tentativa de golpe.
Veterano no tema, Sergio Rezende defende o cinema que olha para o Brasil:
— Meus filmes sempre foram marcados por este compromisso com o país.
A seguir, um pouco sobre cada uma das obras, todas exibidas no Festival do Rio.
Destaque do Festival de Cannes 2025, de onde saiu com os prêmios de melhor direção e melhor ator, o longa conta a história de um especialista em tecnologia que volta para o Recife tentando escapar de um passado misterioso. A trama se passa em 1977, em meio ao regime militar.
— De 2018 a 2022, eu e Kleber nos juntamos muito por conta da política. Fomos dois artistas que falamos muito, que nos expusemos, e sofremos a consequência por isso. Acho que “O agente secreto” nasce dessa sensação de ser perseguido por fazer a coisa certa — diz Wagner Moura.
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Após registrar histórias da ditadura em obras como “Zuzu Angel” (2006) e “Lamarca” (1994), o diretor Sergio Rezende volta ao período para contar a história de Nina (Larissa Nunes, na foto, com Denise Weinberg). Ela é uma mulher recém-saída da prisão que se refugia na casa de Raquel (Weinberg), militante marcada pelos anos de luta política e que tenta descobrir um delator em seu grupo.
— Fui formado pela geração do Cinema Novo. Cresci inspirado nessa visão de cinema que tinha como marca olhar para o Brasil. E as pessoas querem isso. Tirando as comédias, os maiores sucessos brasileiros refletem sobre o país, de “O cangaceiro” (1953) a “Ainda estou aqui” (2024) — destaca Rezende. — São filmes que só nós podemos fazer.
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Documentário de Aurélio Michiles sobre Honestino Guimarães, líder estudantil desaparecido aos 26 anos durante o regime militar. Bruno Gagliasso (foto) dá vida a Honestino em cenas de reconstituição.
— Ao tratar de um personagem emblemático e que foi violentamente assassinado pela ditadura, o filme traz uma história ainda a ser revelada — aponta Michiles — Como dizia Cacá Diegues, o cinema brasileiro é o espelho crítico da realidade do país, refletindo sua política, suas contradições e suas lutas.
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Drama sobre Mariel Mariscot (Renato Góes, entre Pedro Lamin e Pierre Baitelli na foto), ex-policial do Rio notório nos anos 1960 e 1970 por sua atuação na profissão, por integrar o esquadrão da morte e pela relação com mulheres famosas como Darlene Glória (Luísa Arraes).
— Esses anos são como uma chaga que não foi 100% curada, portanto não pode ser maquiada. Acabamos de viver anos de relativa consanguinidade com aqueles, incluindo novas tentativas violentas de golpe. Para se estar “atento e forte” é preciso lutar contra a amnésia histórica — diz o diretor Mauro Lima.
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Após as mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, em 1976, uma jornalista se mostra insatisfeita com as informações oficiais e começa a investigar a possibilidade de uma conspiração, o que desperta a atenção de forças do Estado. Mel Lisboa (na foto entre Dan Stulbach e Maria Manoella) vive a jornalista, num elenco que conta ainda com Zécarlos Machado. O jornalista e apresentador Pedro Bial faz participação como o ex-governador Carlos Lacerda, que tentava unir forças com JK e Jango e que também morre pouco depois, em circunstâncias suspeitas, em maio de 1977.
— Hoje que a gente vive essa polarização tão radical, que as pessoas se tratam como inimigos e não como adversários, acho bom trazer essa perspectiva de que a democracia se constrói com diálogo e não com a guerra — aponta o diretor André Sturm.
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Inspirado em experiência vivida pela diretora Flavia Castro na infância, o filme conta a história de famílias de militantes de esquerda latino-americanos que se refugiam na embaixada da Argentina no Chile após o golpe militar de Pinochet, em 1973.
— Acho que temos uma diversidade cada vez maior de olhares sobre esse período histórico, e isso é maravilhoso. Com abordagens estéticas e temáticas ricas e complexas — diz a cineasta. — Talvez isso seja resultado do susto que levamos ao ver que parte da população começou a defender a volta da ditadura militar, de ver o quanto isso estava sendo banalizado, a ponto de termos tido uma tentativa de golpe. Acho que o cinema, e a arte como um todo, são parte do trabalho de memória coletiva de um país. É maravilhoso o cinema refletir seu passado e reverberar no presente para as gerações futuras.