De clássicos como “Iracema — Uma transa amazônica” (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e “Bye bye Brasil” (1980), de Cacá Diegues, a obras recentes como “Pureza” (2022), de Renato Barbieri, e “Manas” (2024), de Marianna Brennand, o Pará já foi visto inúmeras vezes nas telas do cinema brasileiro. O estado já foi cenário, inclusive, de produções internacionais, como “A floresta de esmeraldas” (1985), de John Boorman, filme de estreia de Dira Paes.
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Mas se muitas vezes o Pará abrigou produções de realizadores de outras regiões do país, o cenário hoje é de consolidação de uma produção audiovisual própria. Durante muito tempo, paraenses interessados em uma carreira no cinema ou na TV precisavam deixar sua terra, como aconteceu com Dira.
A situação, no entanto, mudou radicalmente nas últimas duas décadas. A digitalização barateou os custos da produção, políticas públicas descentralizadas para o audiovisual se tornaram mais frequentes e cursos de formação em cinema e TV passaram a ser oferecidos na Universidade Federal do Pará e em cursos profissionalizantes.
— A produção audiovisual no Pará sofria com muita dificuldade de acesso ao fomento, o que gerava vácuos muito grandes em termos de produção. Com as políticas de descentralização e as cotas para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste nos editais do Fundo Setorial e na Lei da TV paga, a situação começou a mudar — destaca o diretor e produtor paraense Fernando Segtowick. — A produção no Pará começou a ser mais regular e a contar com equipes mais profissionais.
Segtowick lembra da dificuldade de realizar seu primeiro curta-metragem, “Dias” (2000), em um período sem políticas públicas e com altos custos de produção. Hoje, através de sua produtora Marahu Filmes, sediada em Belém, consegue realizar longas, curtas e séries de forma mais frequente, com presença marcante em festivais espalhados pelo Brasil e pelo mundo.
Foi o caso do documentário “O reflexo do lago” (2020), sobre os impactos da construção de uma usina hidroelétrica na Amazônia durante o regime militar dos anos 1980, que resultou no reservatório de Tucuruí. O filme foi exibido no Festival de Berlim.
— O Norte tem seus desafios, mas também tem seus trunfos, como a assinatura dessa floresta tropical tão gigante que se impõe e atrai os olhares do audiovisual — conta Dira Paes, que recentemente rodou “Sedução”, filme inédito de Zelito Viana e Marcos Palmeira, em Alter do Chão. — A COP30 é uma oportunidade de lançar luz sobre as nossas potências e nossos artistas. Belém foi capital cultural do Brasil antes do Rio. Acho que a cena audiovisual do Pará muito rica, mas precisa de políticas públicas ininterruptas para conseguirmos repetir o que aconteceu com o Recife, por exemplo.
A atriz paraense de 56 anos, natural de Abaetetuba, destaca a importância do cinema para também retratar as mazelas do estado. Como em “Manas”, drama sobre exploração sexual infantil na Ilha do Marajó, e “Pureza”, que aborda regiões rurais com condições de trabalho análogas à escravidão.
Na linha do apontado por Dira, o crítico de cinema paraense Ismaelino Pinto destaca que um diferencial do audiovisual do estado é a conexão com a Amazônia.
— Vejo que ainda estamos buscando este cinema feito com brasilidade amazônica. Antes, em décadas passadas, se fazia um cinema que não tinha esta conceituação, de ser um audiovisual da região. Este não era um propósito, tudo era fazer cinema. Agora, com a abertura de novas narrativas, os realizadores estão atrás deste conceito, desta forma de mostrar, filmar e falar da Amazônia com características próprias — diz o jornalista, que destaca “Chuvas e trovoadas” (1994), de Flávia Alfinito, “Ribeirinhos do asfalto” (2011), de Jorane Castro, e “Amazônia Groove”, de Bruno Murtinho, como obras marcantes do cinema local. — Todos querem ver a Amazônia, e agora a produção está atenta pra este detalhe e assim, acho, seremos identificados dentro do cinema brasileiro.
Lançada na Netflix, a minissérie “Pssica”, baseada no livro homônimo de Edy Augusto, conquistou elogios do público e da crítica. A produção foi toda rodada no Pará com atores locais. Ainda assim foi alvo de polêmicas com artistas do estado após o produtor Fernando Meirelles afirmar, em entrevista ao jornal O Liberal, que a série optou por levar profissionais de São Paulo em razão de desafios com a falta de equipe técnica.
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Na mesma entrevista, o cineasta de “Cidade de Deus” afirmou que tem outros projetos no estado com a O2 e que a formação e preparação de profissionais locais, atuando lado a lado com os vindos do Sudeste, era um dos objetivos do projeto. De toda forma, a declaração inicial foi alvo de críticas no audiovisual paraense.
— Acho que não foi das melhores colocações do Fernando. Temos cursos de formação, temos produtoras se colocando no mercado nacional e internacional. Se você vai filmar em um lugar, deve sentar e ouvir as pessoas. Caso contrário, é só uma equipe que vem, filma e vai embora. Penso que a função do audiovisual não é só essa — diz Segtowick.
Vencedor de três Kikitos, o curta paraense “Boiuna” foi um dos filmes mais premiados do último Festival de Cinema de Gramado, em agosto. A diretora Adriana de Faria lamenta a falta de intercâmbio e a “visão colonizadora” de produtoras de outros estados que filmam no Pará. No festival na Serra Gaúcha, ela testemunhou um episódio de xenofobia na passagem da equipe no tapete vermelho. Como resposta, empunhou a bandeira do estado na cerimônia de premiação.
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— Falta uma visão de parte do Brasil sobre o que é o Norte. Elas não estão interessadas em olhar para a região e entender suas complexidades. E quando há a visão, ela muitas vezes é colonialista, de que este lugar está aqui como uma paisagem. Temos muitas produtoras sudestinas que vêm aqui e não nos envolvem no processo. Me interessa mais o que é o cinema do Norte para os nortistas — defende a cineasta.

